Um alguém interessante


As visitas haviam chegado e o que lhe chamou a atenção de imediato foi a prenda de anos que havíamos oferecido à nossa mãe: um eclético conjunto de filmes estava empilhado na mesa da sala, de O Diário da Nossa Paixão (The Notebook, 2004) a O Discurso do Rei (The King’s Speech, 2010), de O Fiel Jardineiro (The Constant Gardener, 2005) a O Inferno na Terra (Stalag 17, 1953) passando pela Cidade de Deus (Cidade de Deus, 2002).
Pegou em cada um deles, fazendo um ou outro comentário ocasional sobre os que conhecia (os mais antigos): “Não me lembro agora como se chamava o pai da Rainha de Inglaterra…”. “George VI” respondi, e o “É isso mesmo!” imediato mostrou-nos que iríamos ser parceiros de conversa pelo tempo que eles estivessem lá em casa.
Perguntei se gostava de cinema, e o “sim” foi dito com tanto interesse, que começámos a falar quase de imediato.
Antes ainda de irmos para a mesa, a mulher interrompeu-nos para uma anedota: não podia haver casamento entre dois seres mais diferentes. A calma, cultura e introspecção que ele tinha a mais eram compensados pela excessiva vontade de dançar, conversar e actuar por impulso que caracterizavam a Clara.
Eu já havia ouvido falar do Gualter, pela sua cultura, por ter uma “biblioteca” em casa… por, à sua maneira, ser uma pessoa a quem o mundo chama de “intelectual” ou “interessante”, mas auto-didacta: não possui formação académica mas o seu interesse pela cultura, mais do que qualquer “rigidez sabedora”, desenvolveu nele um certo humanismo.
Num meio pequeno, mostram uma desculpável sobranceria de quem tem algo ligeiramente superior à média: “Não é para me enaltecer, mas devo ser a pessoa que mais livros leu na Marinha Grande… eu era um grande devorador de livros”. Juntamente com a mulher, Clara, frequentam a “Tertúlia”, Universidade Sénior onde têm aulas de História, Geografia, Matemática, Música, Literatura, Línguas, … “É uma pequena elite aqui na Marinha”, diz ela com uma falsa modéstia que nem lhe fica mal. Afinal, tem alguma verdade e fá-los felizes.

Ao dirigirmo-nos para a mesa, após termos trocado 5 minutos de conversa sobre cinema, quando o Gualter se apercebeu que iria ficar no extremo da mesa oposto ao meu, ordenou de imediato à minha mãe: “Põe-me ao pé do teu filho se fazes favor, porque eu quero continuar a conversa com ele.
Da experiência dos seus 84 anos, eu soube que ele havia assistido no cinema, em Portugal, a E Tudo o Vento Levou (Gone With The Wind, 1939)... (sabia até o ano de produção do filme!), que gostava de “tudo o que era inglês” (quantas vezes me falou de Errol Flynn - que nasceu na Austrália - e Leslie Howard... - sabia que este havia morrido num acidente de avião no golfo da Biscaia!), do neo-realismo italiano, da nouvelle vague, e até conhecia filmes com Greta Garbo! O seu actor preferido era Van Heflin… não me lembrei de ter visto qualquer filme com ele (afinal não é uma estrela de primeiro plano, desculpo-me eu agora). Shane (Shane, 1953)! Como pude esquecer-me de que Van Heflin entra em Shane, um dos Westerns mais ternurentos de sempre… sim, embora as palavras Western e “ternurento” raramente liguem, neste caso aplica-se na perfeição.
Curiosamente a partir da década de 60, os seus conhecimentos cinematográficos começavam a rarear.
Passámos por 3 dos meus filmes preferidos Breve Encontro (Brief Encounter, 1945), Cinema Paraíso (Nuovo Cinema Paradiso, 1988) e Na Sombra e No Silêncio (To Kill a Mockingbird, 1962). Só não conhecia o último. Do segundo até conhecia as duas versões!
Partimos depois para a Literatura: Hemingway e Maugham foram aqueles em quem mais nos fixámos, por serem os que eu melhor conhecia (em Livros, eu claramente estava em desvantagem). Fiquei com um nome na cabeça, fruto da conversa com este homem: o escritor austríaco Stephan Zweig... a ler brevemente, espero.
De Música, ficou encantado quando eu lhe disse que tinha a versão original de uma música que ele já havia corrido meio mundo à procura: “Over The Rainbow” de Judy Garland. Fiquei de lha gravar.
Fotografia, Pintura, Viagens, … de tudo um pouco aquele homem sabia.

Mas também do terror que foram as bombas atómicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, sobre a fachada que era o Regime Soviético até à estupidez do americano que teve a ideia de fazer este último filme a ridicularizar os muçulmanos: “Se já sabemos à partida, com certeza absoluta que eles são assim e que a reacção vai ser esta, é uma enorme estupidez continuar a provocá-los.”.

Já é raro encontrar pessoas que acompanharam grande parte da história do século XX. E mesmo com frequentes falhas de memória - eu prefiro pensar no privilégio que a vida lhes deu em permitir-lhes guardar para si as mais belas experiências… não se lembrarem do passado é assim um privilégio para eles, mas para os outros também: ficam com o caminho livre para formarem opiniões, juízos e impressões… para experimentarem a vida de uma forma mais pura.
A sua lógica é simples, como é suposta ser. E fala apenas quando tem algo a dizer.

Comentários

Ofélia Queirós disse…
Buchmendel ou Mendel, el de los libros; 1929 (não sei como chama em Português). É pequenino. Sugiro que comeces por esse. Enfim, tanto para ler, tanto para ver, tanto que aprender e de cada vez que morre um velho morre muito mais que uma biblioteca. Tchintchin ao Gualter.
António V. Dias disse…
Obrigado pela sugestão.
Quando é que vens até cá?
Beijinhos
DAVID MELAR disse…
E também, do Zweig: "Carta de una desconocida" (nao sei cómo é em portugues). "Mendel el de los libros" é incrívelmente bom.

Um abraço
António V. Dias disse…
Descobri que a minha irmã já tinha esse livro: vou começar por esse e logo vejo se passo para os seguintes.

Um abraço

PS: Não me esqueci dos sites de matemática
António V. Dias disse…
Em conversa com o meu pai, descobri que o meu avô, falecido em 1953, era fã do Stefan Zweig: o meu pai tinha na garagem 4 livros dele!