A Terceira Geração

A rampa que sobe do estacionamento subterrâneo em direcção à superfície foi projectada para fazer sair e entrar as viaturas dos milhares de funcionários e visitantes que todos os dias elegem o complexo das Torres de Lisboa como santuário de romaria laboral onde agradecem a dádiva que lhes garante o ganha-pão.
A curva que pela manhã conduz os pilotos automáticos ao subsolo contorna as grelhas de ar condicionado que libertam uma fumarola aconchegante nas manhãs frias de inverno quando a recta desabrigada que corre ao longo das torres A, B e C canaliza o gélido vento matinal contra as faces desanimadas dos funcionários a quem não foi concedido o direito de parquear a viatura ao abrigo das intempéries. Mas por vezes a Natureza - ou Deus para os que carecem de colo existencial - acerta o passo com a justiça, como no dia em que rebentou uma conduta de esgoto mesmo em cima de dois carros, um deles descapotável (embora coberto na altura, para mal de qualquer relato honesto do episódio), conferindo uma segunda demão de merda a quem queria abrigar os modelos da moda longe dos da “ralé”, expostos diariamente aos ditames da meteorologia e ao roubo parquimétrico que a Câmara Municipal promove junto daqueles para quem nem sempre é possível deixar o bólide estacionado na garagem.
Existe contudo uma terceira geração de pessoas, cuja vida decorre em contra-ciclo em relação aos demais, para que esses mesmos “demais” possam ter o conforto sem sequer se aperceberem do contributo que essa geração dá a esse mesmo conforto. A terceira geração nem estaciona o carro na garagem nem o deixa na rua. Simplesmente não vem de carro para o trabalho, pese a hora a que pegam ao serviço exigisse a utilização de viatura própria mais do que os que tranquilamente nela se deslocam em hora de ponta.
Eu, que pertenço à segunda geração desde há quatro anos (a que tem carro mas não o deixa na garagem), levanto-me cedo para fugir ao trânsito e ganhar direito a um lugar na via pública onde me seja permitido deixar o veículo. Criei assim uma rotina própria em que encosto o carro pelas sete e vinte da manhã, e preencho o “momento zen do dia” numa esplanada junto às Torres ora a ler, ora a cultivar-me de inutilidades numa rede social, tão estupidificante quanto viciante, ora a ver o dia laboral a ganhar forma. É um momento meu, fruto de uma necessidade idiota de despertar de madrugada, cerca das seis da manhã!
A terceira geração tem que subir a pé a rampa do estacionamento à hora a que a primeira geração a desce de carro. Vejo as mulheres que a compõem subir em conjunto, desfardadas, parecendo as pessoas que são mas que nunca são consideradas como tal quando passam por nós com o logotipo da empresa, o balde e a esfregona. Às oito e vinte, quando decido abandonar a leitura ou o ócio virtual e me dirijo, qual autómato, ao escolho da minha rotina, a pé pela via do temporal, vejo-as sair com o ar mais ou menos satisfeito de quem cumpriu parte da missão diária.
Eu, que me queixo de levantar às seis da manhã, envergonho-me perante o que imagino serem obrigadas a suportar as senhoras da terceira geração: vêm de longe, vêm sozinhas, vêm de uma madrugada anterior à minha, vêm de transportes públicos, vêm limpar o chão que mais tarde irei pisar… e saem com um sorriso.
São mal pagas, obrigadas a servir em casas, a limpar escadas, a costurar, a ter três e quatro empregos diários, precários, pior que estagiários… e eu queixo-me porque não estou a gostar do que faço, apesar de ganhar três, quatro ou cinco vezes mais do que as senhoras da terceira geração. Sempre que as vejo sair em fila semi-ordenada, recordo-me da Metrópolis de Fritz Lang, filme de 1927 que retrata uma sociedade futurista onde a classe mais baixa, a dos escravizados, trabalhava debaixo da terra. Mas esses tinham mais sorte do que a terceira geração: era o elevador e não a rampa quem os transportava até à superfície. Era esse o desolador retrato de uma sociedade futurista de então… noventa anos depois, a realidade é outra...

Todos os dias encontro a Lucinda. Quando não a vejo na “caravana” que sobe a rampa a caminho do segundo emprego no momento em que me dirijo para o primeiro e único trabalho que tenho, encontro-a no sétimo piso da Torre C quando entro mais cedo (até às oito). E seja na rua ou no escritório, a sua simpatia e boa disposição, embora não tenham o poder para me fazer ultrapassar o desânimo com que olho para o meu trabalho nesta fase, pelo menos despertam a minha atenção fazendo-me pensar um pouco no assunto e até por vezes, relativizar.
Acena-me sempre (e eu a ela) quando passo pela “via ventosa”, e eu sinto-me a pessoa mais privilegiada do mundo por poder subir de elevador até ao espaço que a Lucinda acabou de limpar. Vi-a pela primeira vez há anos, quando comecei a chegar (mais) cedo mas como, quando eu pendurava o casaco e ligava o computador ela estava sempre a falar ao telemóvel em crioulo enquanto fazia o serviço, os nossos contactos limitavam-se a um aceno e um sorriso. Com a repetição sucessiva dos encontros veio a conversa e uma proximidade que se proporciona sempre que duas pessoas necessitam de falar de nada em particular, deixando as palavras fluir entre um e outro, para onde quer que elas conduzam o diálogo.   
Foi ela quem me foi contando a história da sua vida… eu pouco lhe falei da minha até hoje. Não lhe agradeço a confiança por sentir que ela não o faz por ser a mim que confidencia aspectos que são mais familiares do que íntimos, mas por eu ver nisso uma característica intrínseca, mais do que uma porta aberta pela minha pessoa. E como me tem feito rir…
Um Natal, dei-lhe uma caixa de bombons que havia levado para o trabalho para distribuir pelos meus colegas por não querer ter em casa um obstáculo tentador que boicotasse a tentativa que eu levava a cabo na altura para perder peso. Resolvi oferecer a caixa à Lucinda e a sua alegria e gratidão valeram bem a minha satisfação pela simples oferta. Deu-me um beijo e o “Bom Natal” que me desejou marcou o início de algumas conversas regulares que têm tido seguimento no tempo até aos dias de hoje.
Episodicamente, pois o nosso contacto diário não é longo (dez-quinze minutos, no máximo), foi-me contando a história da sua vida, dos (muitos) filhos que teve, dos que perdeu (pelo menos um), dos que tem em Cabo Verde e dos que estão em Portugal, do homem com quem vive e que esteve internado devido à diabetes há cerca de um ano, do triste desenlace do internamento que resultou numa perna cortada e uma cadeira de rodas, do inferno que se seguiu (e que continua) com os ciúmes projectados sobre a Lucinda de cada vez que ela atende um telefone ou se arranja para sair à rua. Mas a forma graciosa como ela conta todas estas adversidades faz-me ver nela um exemplo de força e superação… é talvez essa a razão por que gosto tanto daqueles quinze minutos de conversa.
E então, de cada vez que tenho vontade de receber um pouco da sua companhia, entro no escritório pelas oito ou até antes, só para a ouvir. Da experiência dos seus sessenta anos, vai-me contando as tristezas com o sotaque capaz de transformar a tragédia em comédia (e não é racismo ou pedantismo da minha parte… é simplesmente encontrar na forma um modo de aligeirar o conteúdo menos favorável de uma vida):

- O meu marido está insuportável… passa a vida a dizer “Foda-se”: eu atendo o telefone e “Foooda-se”; eu saio para ir às compras e “Foooda-se”… já chamei o filho dele para o levar e já veio o meu filho dizer que o mete num lar… o meu neto lá no infantário, estava a pintar com os outros “mininos” e diz “Foooda-se”. Então os “mininos” começam todos a dizer “Foooda-se”, e quando o fui buscar a educadora pergunta-me «Dona Lucinda, o que é que se passa com o Diogo que só diz “Foda-se” e agora já todos os meninos da sala aprenderam a dizer “Foda-se”?»
Eu riu-me com vontade, sem lhe confessar que a forma como ela coloca a história e o sotaque com o qual lhe dá vida formam a quase totalidade da razão do meu riso.
- Umas pessoas acham graça mas não tem muita graça. – diz-me ela. E eu tenho que lhe responder com uma meia verdade:
- Eu acho graça a estas coisas. Não ligue!   

Há tempos, quando eu “curtia” uma fase menos boa da vida nas madrugadas silenciosas do piso 7 da Torre C, a Lucinda entretinha-me a mente sem o saber. E chegou a perceber uma vez que eu andava triste, tratando logo de proferir aqueles clichés mas que, no jeito dela, deixam de o ser para se tornarem mais verdadeiros, ou pelo menos era assim que eu os via, pela vida que ela dava às palavras de ânimo que dizia. Penso que foi a única vez que ela soube algo da minha vida.
Esta manhã dei-lhe um chocolate que tinha no escritório e uma vez mais, recebi um agradecimento mais delicioso do que todo o açúcar que lhe ofereci…

- Eu podia passar toda a vida a comer açúcar… adoro açúcar… - diz ela.
- Também eu. – respondo – por isso é que tenho que ter cuidado.
- Eu não me importo… sou feia mesmo…
- Não é nada! – digo com sinceridade – É que não é mesmo.
- Sou sim, eu sei que sou feia: sou muito feia mas muito simpática. E por isso é que sei lidar com os bonitos. – riu-me com vontade – E gosto da pessoa com quem estou a falar.

E é este o maravilhoso exemplo que me oferece a terceira geração. Ultrapassado o despertar às quatro da manhã, ultrapassadas as horas nos transportes, ultrapassado o trabalho de limpeza para que outros possam pisar o chão acabado de limpar, ultrapassada a perspectiva dos dois ou três trabalhos que esperam por ela durante o dia, ultrapassada uma vida familiar mais ou menos complicada… tudo é ultrapassado com um chocolate e cinco minutos de conversa… pelo menos durante cinco minutos somos só os dois, e os ciúmes do marido permanecem guardados no cofre do desconhecimento. Porque o único mal que há nesta história é a existência de três gerações. Se as conseguirmos, ainda que lentamente, interceptar, chegará o dia em que a normalidade tomará conta destas vicissitudes e os ciúmes… ou morrerão por si próprios, ou morrerá o seu portador por não os conseguir aguentar nem aguentar a maravilhosa mulher que, apesar de tudo, lhe permanece fiel.   

Caparide, 17 e 18 de Dezembro de 2017

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