Noites de Cinema

Na segunda-feira passada a Casa da Achada cumpriu mais uma sessão de um ritual alimentado há anos (se não ininterruptamente, anda lá perto). Semanalmente, qualquer que seja a estação do ano ou o estado do país, as noites de segunda são noites de cinema. E se no Inverno o interior do Centro Mário Dionísio faz a vez de teatro mais ou menos improvisado, no Verão é o beco em frente à Casa que possibilita uma romântica tela estampada na parede de um dos prédios que o confina.
Lisboa fornece uma oferta de luxo no que concerne ao cinema ao ar livre embora quase todos os eventos terminem com o Verão. Não deixam de ser iniciativas meritórias (como por exemplo o Cineconchas, gratuito, ou a Esplanada da Cinemateca ou o Topo Chiado, a pagar) mas muitas padecem do mal que advém do movimento de translação da Terra: acaba o Verão e com ele viaja até ao ano seguinte o cinema gratuito. Mas não na Achada, esse reduto de persistência, boa vontade e conhecimento bem no coração da Mouraria: os ciclos temáticos (os filmes escolhidos para passar na Achada são organizados em ciclos trimestrais) continuam no interior da Casa quando o tempo arrefece.
O meu gosto pelo cinema vem de longe e tem suportado o vento dissuasor das noites lisboetas (só quem não frequenta estas sessões com um mínimo de regularidade é que pode dizer que as noites de Verão em Lisboa são de Verão); o desconforto das cadeiras de plástico capazes de transformar o meu cu num cubo semirrígido de cada vez que um filme termina já próximo da meia-noite; a espera a que normalmente me predisponho para conseguir um lugar sentado (as borlas têm os seus custos) ou os barretes que por vezes enfio quando arrisco o Cinema de Autor, expressão que me aterrorizou em tempos por significar, para a tenra idade de então, “ isto é uma g’anda seca” ou “não percebo um boi desta m...” ou ainda, quando os ambos se juntavam: “onde eu me vim meter…”, estado de espirito normalmente acompanhado por sucessivas miradas furtivas para o relógio que me obrigavam a recalcular constantemente o tempo em falta de acordo com a hora de início da sessão e a duração do filme, e por uma vergonha que acabava quase sempre por vencer a coragem (o que hoje já não acontece) e me “obrigava” a ficar até ao fim pois quase todos espectadores permaneciam estoicamente sentados, enregelados, quadrados, e até mesmo siderados.
Se o filme vai um pouco além do comercial, olho-os e vejo muitos como geeks. Eu sou um deles mas como os meus olhos não olham para mim, livro-me do meu próprio juízo. Na Achada, ao contrário do Cineconchas que é muito mais popular (embora de grande qualidade e com filmes escolhidos por quem sabe), é a malta das Artes quem me parece estar em maioria. A programação dos ciclos é bastante eclética e a pequena apresentação que oferecem antes de cada passagem e discussão/debate final configuram mais-valias que distinguem esta das demais sessões de cinema da capital.
Por vezes falha o dvd, o projector ou a legendagem mas tudo isso faz parte desta beleza capaz de arrancar um amante de cinema ao conforto de uma sala com cadeiras almofadadas, ar condicionado, pipocas e refrigerantes e transportá-lo para uma experiência muito mais próxima, pessoal, popular (apesar da impopularidade de alguns filmes), bonita (o cinema na rua é tão mais bonito) e até diferenciadora. As mantas que os promotores emprestam só reforçam esta boa vontade em servir a comunidade (nem sempre são emprestadas).
Na segunda-feira passada a Casa da Achada cumpriu mais uma sessão de cinema: o tema do terceiro trimestre do ano trouxe Quando o Rio se Enfurece, filme de 1960 realizado por Elia Kazan, um dos melhores e mais importantes realizadores de todos os tempos e um dos maiores filhos da puta também. Se há alguém capaz de exemplificar o esforço que devemos fazer para distinguir a Arte da pessoa, é Kazan.
Um Eléctrico Chamado Desejo.
Há Lodo no Cais.
Esplendor na Relva.
Se nada mais tivesse feito na vida, estes três filmes seriam suficientes para o colocar no panteão dos melhores. Mas o toque de génio toca muitas vezes o tique de cabrão, o que foi pena porque à conta dele, grandes obras ficaram amputadas ou mesmo por realizar e, acima de tudo, grandes profissionais ficaram sem trabalhar. Mas não deixou de ser enorme na História do Cinema, mesmo que Quando o Rio se Enfurece, não sendo um mau filme (longe disso), não figure entre as suas obras mais memoráveis.
Na segunda-feira passada a Casa da Achada cumpriu mais uma sessão e eu não rapei frio, não ouvi a introdução nem fiquei para a discussão final, não coloquei a moeda de dois euros no porco mealheiro que, com o seu olhar inquiridor de homem de bilheteira nos faz sentir mal se não contribuirmos para a manutenção deste verdadeiro serviço público, não fiquei sem posição na cadeira nem arranquei da Mouraria às tantas da noite para vir dormir rápido a casa. Ontem não fui à Achada mas se tivesse ido, era assim que me teria sentido. E teria adorado. Mesmo repetindo um filme que devo ter visto há mais de quinze anos. Porque os rituais que criamos conferem significado às experiências. São sempre iguais e é por isso que gosto deles. Mas são sempre diferentes e é também por isso que gosto deles.

Caparide, 17 de Julho de 2018

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