Dia III
Hoje, pela primeira vez escrevo o relato da viagem de uma só vez, à noite,
já que o dia foi diferente não tendo libertado parte da tarde para o já
habitual “repouso na hora do calor”. E hoje foi o dia mais quente até agora…
O Lassan, um guia, levou-nos ao vale do rio Ourika, nos Montes Atlas
o que constituiu uma aventura daquelas…
Percorrer as ruas de Marraquexe transporta-nos para uma época reconstruida
pelas aulas de História quando as rotas e entrepostos comerciais da Idade Média
e do período dos Descobrimentos caracterizavam o mapa de então: o comércio que pudemos
observar para lá das janelas da carrinha Hyundai estendia-se para fora dos
limites da Medina. Por mais de trinta minutos prolongou-se também a cor
tijolada da cidade comprovando a sua real dimensão.
Com o dia enevoado, o primeiro desde que chegámos, percorremos uma paisagem
semi-desértica (“árida” seria um temo mais exacto) com o Atlas ao fundo, sempre difuso pelas nuvens baixas que pesavam sobre
nós. Embora pouco do que fui vendo se parecesse com a ideia do “deserto” que eu
havia metido na cabeça quando vi esta terra de cima, do avião, nenhum detalhe
por onde passei me desiludiu um bocadinho que fosse.
O Lassan fez questão de referir que era berbere e não árabe (algo que
gostam de deixar bem vincado) e falou-nos um pouco das tradições do seu povo
quando parámos para tirar umas fotografias a uma aldeia berbere (pejada de
antenas parabólicas!). Como noutras culturas, antigamente era o pai quem
escolhia a noiva para o filho ao qual só era permitido ver a prometida ao longe
antes do casamento. Se a menina agradasse, o rapaz faria um chá mais açucarado;
se a jovem não lhe “caísse no goto”, levava com chá amargo. Na tradição berbere
as mulheres têm entre doze a catorze filhos uma vez que os filhos são a “maior
fortuna que os pais podem ter”. Se “fortuna” significar “sorte”, até posso
compreender, caso contrário, é mais despesa do que fortuna… Durante a paragem
apareceram logo dois tipos de mota que encostaram para nos vender umas merdas
tão ranhosas que nem dado eu quereria aquilo… até no meio do “nada” estes tipos
sabem onde nós estamos para fazer negócio: está-lhes no sangue!
No vale de Ourika a terra é argilosa, daí a cor e o material das casas. As
vendas de rua levam-me a refrear a admiração descrita acima: com tanta gente a
vender, surpreendente seria não aparecer ninguém a tentar impingir uma
inutilidade qualquer. Primeiro estranha-se, depois…
É para mim cada vez mais fácil reprogramar a aceitação do que vou
experienciando quando a realidade não condiz com as expectativas que havia
criado: a paisagem da montanha é bem diferente do que eu idealizara mas tem uma
beleza tão própria que não me foi difícil ir assimilando aos poucos.
Cada viagem é uma descoberta de nós próprios. Com os lugares que visitamos,
as culturas que conhecemos e as experiências a que nos propomos, descobrimo-nos.
Talvez eu tenha viajado pouco até hoje e só agora esteja a descobrir que há
coisas que eu não equacionaria viver e que, tomado o risco (para mim ainda é um
risco), sai até “melhor do que a encomenda”. Marraquexe (e Marrocos) está aí
para o comprovar.
Visitámos uma casa berbere, impressionante para mim pela pobreza e
esterqueira presentes (deram-nos a comer um bocado de pão que as moscas e as
abelhas haviam provado antes… comi e passadas doze horas ainda não caguei
fininho. O Lassan tinha dito que um dia havíamos de ir passar uma ou duas
noites a casa da família dele para vermos como é o “modo de vida berbere”. É o
“vais”… quem não vai sei eu quem é!
Mais tarde parámos numa cooperativa de óleo de argão (de que eu, na minha
ignorância, nunca tinha ouvido falar): o processo de extrair o óleo para os
diferentes fins é engraçada embora nos tivesse sido apresentado com um
profissionalismo típico para turista ver. De resto, além de ser caro como a
merda, aquilo parece-me daqueles produtos que dão para tudo e mais um par de
botas (se o aloé-vera entretanto passou de moda, este parece ser o “senhor que
se segue”): serve para comer, para o cabelo, para a psoríase, para a cara… e se
puxarmos pela imaginação, também deve ajudar na digestão, no reumatismo ou na performance sexual. Para
informação, um boiãozinho de “Nutela de Marrocos” (que é bem boa) custa vinte e
cinco euros!
À beira do rio que corre ao longo de um vale bem cavado e por isso mesmo,
bonito e impressionante, sofás, mesas e cadeiras coloridas junto ou mesmo
dentro de água compõem os restaurantes que antecedem o caminho para a cascata.
Paramos num deles para um almoço bem no coração do vale do Ourika. Comi tomate (Uhhh, vegetais crus… mais um papão
desmascarado: ainda não caguei fininho…)
Depois veio o passeio (julgava eu…).
Um outro guia, o Nordi, levou-nos por um caminho no qual começamos a subir
“moderadamente”: uma escadita aqui, uma pedrita ali, uma pontesita da treta,
umas bancas para vender de tudo (até aqui…), sempre acompanhados por magotes de
gente a subir e a descer. O tempo cada vez mais pesado ajudava à festa e à
medida que fomos avançando, o terreno foi inclinando ao mesmo tempo que se
tornava escorregadio. Os meus ténis devem ter ficado todos fodidos mas a
trepadeira, apesar de não poder estar mais longe do que eu antecipara, foi fantástica:
dos seis, chegámos quatro à “terra prometida”, a cascata revigorante com a gélida
água pelo joelho e o fundo forrado de calhaus a tentarem sem sucesso boicotar o
duche: o Filipe, o Vítor e eu lá nos metemos debaixo da cascata (a Patrícia só
não o fez pelo ambiente não ser apropriado para bikinis). As paisagens que vimos eram deslumbrantes tal como as
marroquinas que vendiam ao longo do trajecto (até agora, foi este o sitio onde
encontrámos as raparigas mais bonitas).
A descida foi outro filme e eu só rezava ao Deus em que voltei a acreditar
naqueles trinta minutos para não me esbardalhar ao comprido… olhava para os
marroquinos e pareciam macacos a saltitar entre os calhaus, ora com putos ao
colo, às cavalitas, pela mão… enfim, uma aventura que vai directamente para o
álbum de memórias de Marraquexe (embora a acção tenha decorrido a setenta
quilómetros da cidade).
O resto do dia foi para recuperar: duas garrafas de vinho no Riad entre
outros tantos mergulhos e o jantar no terraço do Taj’in Darna (hoje comi uma Pastilla
= Pastel de frango polvilhado com açúcar e canela!)
Amanhã: hammam: mais uma
experiência para recordar (ou talvez não).
Dia IV
No caminho para o hammam o
François conduziu-nos pelas ruelas estreitas e obscuras da Medina num dia que
se adivinhava de grande calor. Estamos de novo no meio de uma cena de filme,
percorrendo um trajecto labiríntico até uma portinhola que, tal como o Riad
onde estamos alojados, tem um aspecto decrépito por fora mas por dentro é até
bastante aceitável. Após uma boa recepção (que no meu preconceito é sinónimo de
“ocidental”), lá escolhemos um pacote marroquino para viver a experiência… Vamos
até um balneário onde o roupão que me calha está carregado de óleo (bingo!) e depois
de o trocar, vamos os quatro (o Filipe, o Vitor, a Amélia e eu) para a sala do hammam onde duas marroquinas “todo-o-terreno”,
muito simpáticas mas com um cheirinho que nem todos os óleos e sabão com que
nos besuntaram nem a água com que continuamente lavavam a divisão foi capaz de
anular! De resto, fomos lavadinhos, depois levámos uma esfrega com uma lixa
número 8 daquelas que o meu pai comprava na drogaria Cajoar no Monte Estoril quando eu era puto e a bricolage era o passatempo de fim de semana dos homens de família
antes do IKEA ter vindo estragar a vida de uns e facilitar a de outros. Levámos
literalmente uma esfrega bem lixada
(a língua portuguesa é tão rica!) mas que soube pela vida. Depois veio a
massagem: corpo inteiro, miúdas giras e óleo d’argão! O que mais pode um tipo
pedir nesta vida? Sem ironia, foi a melhor massagem que já fiz (não fiz foi
muitas). Parte chata (que também acontece em quase todos os locais de massagens
em Portugal à excepção de um): um tipo sai de lá todo cagado de óleo. É que nem
um banhinho para soltar aquela oleosidade que vem agarrada ao cabelo, à roupa,
à pele, e ainda por cima no dia mais quente do ano, insuportável até para respirar,
em Marraquexe! Transpiramos mais porque
temos os poros abertos… é bom para libertar as impurezas… Pois… eu paguei
pela experiência que foi fantástica, ficar com “óleos-aloé” era dispensável: só
ansiava por um banho para libertar o corpo da libertação das impurezas.
Como estávamos a derreter com o calor, resolvemos ir até ao Suk fazer umas compras: regateámos os
preços de umas camisolas de futebol que o Filipe quis levar para os filhos e os
tipos, no meio daquele labirinto, sabiam exactamente onde se encontravam a
Amélia e o Vitor conduzindo-nos, a mim e ao Filipe, até eles. Mais tarde soube
que têm câmaras… Big Brother’s Watching
You.
Almoçámos refrescados na praça, no Café
Aqua, comidinha italiana para lembrar o nosso querido Portugal.
Só ontem à noite é que percebi que aqui os peões se deslocam junto à parede
pela direita (no sentido do tráfego portanto). Apesar do Abdel nos ter feito o
aviso quando chegámos, pensei que o “junto à parede” fosse mais importante do
que o “pela direita”. Daí a nossa experiência Twilight Zone no caminho para o Riad ao fim da primeira noite:
vínhamos pela esquerda… e ainda bem!
A pressão de água é coisa que rareia por estes lados o que pode ser
desagradável se estivermos a falar de um autoclismo… um jarro decorativo de
latão que durante três dias teve como único propósito enfeitar o quarto viu
hoje alargar-se o seu campo de acção para outros fins não tão estáticos mas
quiçá mais nobres…
As surpresas que vão compondo estas férias, sejam elas a respeito do choque
entre realidade e expectativa, da convivência com novos parceiros de férias ou
simplesmente de experimentar coisas novas (ainda não experimentei haxixe)
trazem-me uma imagem de Marrocos que, ainda que possa ser parcelar, parcial e
particular, me faz ganhar um respeito adicional por este país: o Rei proibiu os
haréns, as pessoas são educadas, o país é seguro, a comida não é muito agressiva
e, às quatro da tarde do quarto dia com quarenta e seis graus lá fora, ainda
não caguei fininho!
O aperitivo que o François ofereceu no terraço acabou numa verdadeira aula
de empreendedorismo: o homem contou-nos a história da sua vinda para Marraquexe,
desde a morte do pai e a venda da casa de família que lhe disponibilizaram uma
verba à qual juntou o dinheiro resultante da venda dos bens que detinha em
Paris até ao estudo que fez do lugar para implementar o Riad, os critérios que
utilizou, os Riads que visitou… enfim, trabalho de um verdadeiro profissional,
sozinho, determinado e corajoso. Sente-se realizado.
O calor poeirento (embora não pegajoso como em Lisboa) prolongou-se pela
noite em que decidimos fazer um jantar trajados à marroquino. Não me apeteceu
comprar estas vestes e o Vitor “emprestou-me” um fato que havia comprado para
eu não me sentir deslocado, algo que não aconteceria mas ainda assim, valeu a
atenção. E a fatiota até nem era feia.
O nosso último jantar em Marraquexe foi no Café Glacier, o mais antigo restaurante da Jemaa El Fna, um espaço bonito, capaz de proporcionar mais uma
vista panorâmica sobre a praça, e onde a sorte com as opções do menu não quis
nada comigo: uma Pastilla sem sabor e
um crepe de chocolate que nem um Tiranossauro Rex conseguiria dar conta. Ao
descer a escada de volta à praça, uma barata atravessou-se no meu caminho.
Acabámos a noite no Kosybar para
uma última bebida alcoólica (as outras não posso dizer onde foram tomadas… ou
se calhar já disse) e no regresso ao Riad subimos ao terraço para desfrutar de
uma última noite de verão. Destas noites em que apetece estar na rua até tarde
a borregar.
Dia V
O último dia em Marraquexe foi uma coisa sem graça, como o são quase todos
os dias de férias em que partimos a meio do dia: arrumar as malas, comprar os
últimos “recuerdos” (últimos e primeiros para mim), termos que deixar tudo
pronto às onze e meia da manhã o que inviabilizou um último mergulho no tanque
do terraço do Riad,… enfim, não fizemos turismo a sério mas também não gastámos
o dia a contar os minutos. Um dia onde não
se fode nem se sai de cima para empregar um bonito provérbio da língua portuguesa.
O resto do dia não teve grande história: um almoço marroquino para
despedida, partida para o aeroporto, desfazermo-nos dos últimos dirhams (a
minha veia matemática conseguiu optimizar o gasto ao comprar duas caixas de
bolachas de modo a ficar com 1 dirham (=9 cts€) no bolso!), e eu começar com
tonturas.
Apesar de ter sido uma viagem que alterou substancialmente a ideia que
levava à partida, gostei muito de Marraquexe e dos seus habitantes (bem mais
simpáticos do que eu pensava, embora um bocadinho chatos quando se tratava de negociatas),
do ambiente algo exótico da cidade e muito de outro tempo (não grandes marcas
do ocidente, pelo menos nos locais por onde andámos). De forma alguma seria um
país que eu escolheria para viver tais as diferenças em termos de higiene,
acesso à cultura, clima e sobretudo, tranquilidade, face ao lugar onde vivo.
Contudo, é um sítio onde vale bem a pena demorarmo-nos uns dias para uma
visita.
Do avião pude comprovar a dimensão gigante desta cidade. E imaginar que
andei ali pelo meio…
Expressões portuguesas ouvidas ao longo destes quatro dias (por esta
ordem):
- Cristiano Ronaldo
- Obrigado
- Batatas Fritas
- Pachacha
O dia estava quente p’ra caralho e só cheguei a casa pelas oito e meia
depois de aterrar em Lisboa às seis e quinze: viajar de avião pode ser muito
prático mas a junção da antecedência, bagagem e segurança torna-a numa forma de
nos deslocarmos não só cansativa como também desconfortável (quase seis horas
entre chegar ao aeroporto e entrar em casa para um voo de uma hora e quinze).
A noite foi dura fazendo-se finalmente sentir o “efeito-Marrocos” no meu
aparelho digestivo. Mas em Marrocos
nunca, em momento algum, eu cheguei a cagar fininho!
Marraquexe e Caparide, 30 de Julho a 5 de Agosto
de 2018
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