Melhor só o 'Made In Correeiros'


Os locais de ocasião possuem a ambivalência paradoxal de, apesar de nem sempre oferecerem a qualidade que exigiríamos caso exercêssemos a nossa escolha livre de constrangimentos, não deixarem de nos atrair por servirem o propósito de nos desenrascar num momento de necessidade. Isto aplica-se a uma loja de ocasião aberta fora de horas, a um beduíno que vende água fresca no meio de um trilho com uma inclinação média de 10% em Petra, ou à venda de mantas numa sessão nocturna de cinema ao ar livre, gratuita, quando poucas são as noites de Verão em Lisboa onde se pode estar sentado tranquilamente numa esplanada em t-shirt sem bater o dente.

Um dos hábitos de Verão que se já tornou num clássico da minha vida é a presença, normalmente uma vez por temporada, num parque de Lisboa para ver cinema à noite ao ar livre. O evento e o parque congregam o bom e o mau do serviço ocasional.
À PARTE: Para não ter problemas mais tarde, não referirei o nome do parque. Digo apenas que é conhecido por “Quinta”, começa por “C”, termina em “S”, tendo um “O” e um “N” a seguir ao “C” e um “A” antes do “S” com duas letras de intervalo: “Quinta das CON_ _AS”. Quem quiser jogar à forca está à vontade.
O frio que ano após ano foi fustigando (sem afugentar) os espectadores que estoicamente foram marcando presença nas sessões, levou a organização a emprestar mantas aos primeiros a chegar à plateia e que deste modo conseguiam um bom lugar. Daí ao nascimento do negócio não passaram mais de dois ou três anos: as mantas começaram a ser vendidas a quem não estivesse bem agasalhado.
No entanto, e como o parque é agradável, sabe bem chegar cedo e, sentado numa esplanada à espera da hora do filme, ver cair a noite ao mesmo tempo que picamos algo…

Não me lembro em que ano se passou esta história, nem sequer recordo os detalhes da mesma, não por não merecerem ser contados, mas pela erosão que a memória foi sofrendo ao longo do tempo, por um lado, e por estar cheia de inutilidades por outro, não me permitindo reconstruir o episódio do maravilhoso “jantar pré-filme” com precisão. Ainda assim, vale o esforço.
Fomos chegando aos poucos à Quinta, eu antes de todos os outros, tendo combinado encontrar-nos numa agradável esplanada aberta àquela hora (deveriam ser umas 19:30 quando me sentei). Não estava ainda frio quando fiz o pedido (não me recordo se já mais alguém havia chegado): bifana no prato não sem antes o empregado ter insistido para que eu optasse pelo buffet que estava pronto no interior do estabelecimento. Insisti na bifana: além de ser aquilo que me apetecia e de ser mais barato, o interior estava vazio o que não abonava muito a favor da qualidade do buffet embora tal pudesse ter a ver com a hora madrugadora a que eu queria jantar. A esplanada estava composta.
Sei que já não estava sozinho quando assistimos a uma discussão entre o empregado e o patrão pois não fui eu quem se apercebeu da mesma: a nossa mesa já havia atraído duas ou três “vítimas” do mau serviço com que começávamos a ser presenteados.
A segunda leva de pedidos (para os dois que entretanto haviam chegado) foi mais difícil. Nunca antes eu havia assistido a um empregado a dizer mal da comida do estabelecimento do qual ele era suposto enaltecer o produto…

- Tem a certeza de que quer bitoque? A carne está muito dura! Parece sola! Não lhe consigo vender isso.
- Mas tem ou não? – diz uma das pessoas que estava comigo.
- Ter tenho, mas o buffet está muito melhor. Dessa carne não se aproveita nada mesmo…
- Mas ainda assim eu gostava de experimentar o bitoque! – não sei se perante tamanha insistência eu teria arriscado. Aquilo parecia tanto uma cena de Fawlty Towers, onde o Basil Fawlty se fazia valer de todos os meios para aldrabar os clientes “à cara podre”.
- Você é que sabe… - respondeu laconicamente o empregado afastando-se da mesa a bufar.

Rimo-nos. Apesar de tudo, aquela cena non-sense tinha a sua graça pois encaixava perfeitamente num sketch de humor absurdo sem necessidade de inventar muito no guião tal era a riqueza que a realidade nos revelava.
Os últimos amigos a chegar não tiveram a mesma “sorte”. Deveríamos ser uns cinco ou seis quando, após insistentes solicitações para fazermos o pedido enquanto o tipo fazia orelhas moucas, lá conseguimos que ele viesse até junto da nossa mesa. Julgo que se apercebeu de que havíamos passado parte do tempo a gozar mas todo aquele teatro absurdo estava a pedi-las.

- De certeza que não querem o buffet? Podem servir-se lá dentro e trazer cá para fora… - de novo a mesma conversa.
- Sim, temos a certeza. – diz um dos presentes, já avisado de que ali não era fácil comer o que se queria, reiterando o pedido que havia feito antes (o qual não me recordo).
- Mas isso já acabou! – responde o homem em jeitos de desespero e sem arte alguma para passar a mensagem com diplomacia.
- Como assim já acabou? Deixou-nos fazer o pedido durante dois ou três minutos para nos dizer que já acabou?!
- É isso mesmo: lamento mas acabou! E para vocês também já não há! – disse ele a quem havia chegado logo depois de mim e já tinha pedido num momento anterior.
- O quê?! – disse um deles – Mas nós fizemos o pedido há dez minutos e o senhor não nos disse nada!
- Pois mas na altura não sabia que já tinha acabado!
- Então o que nos está a dizer é que não há mais nada além do buffet… - julgo que fui eu quem o disse.
- É isso mesmo!
- E a minha bifana? – disse eu preocupado: era o único com esperança de comer algo diferente pois o meu pedido ainda não havia sido “assassinado”.
- A sua está a ser feita!
- E não há mais bifanas?
- Não! A sua era a última! – creio que foi aqui que nos largámos a rir, ali mesmo na cara do homem. Aquilo era surreal.
- Olhem se quiserem podem reclamar com o meu chefe…

Reclamámos sim, mas foi com ele e não com o chefe e lá acabámos por pedir (os que não haviam conseguido o que queriam) o buffet.
Tudo aquilo era um filme e dos bons, mas eu também queria ver o outro filme e começava a ficar inquieto com o tempo que aquele filme estava a demorar. Mas como muitos filmes que demoram a envolver o espectador para depois começarem a desvendar a trama a um ritmo surpreendente, também ali tudo se apressou: ao mesmo tempo que a malta se serviu do buffet (ou não se serviu de todo pois creio que houve quem perdesse o apetite pela antipatia) chegaram os pedidos dos poucos sortudos como eu, que tiveram direito a comer o que desejavam. Cada garfada soube-me como se aquela bifana tivesse sido retirada de um porco gourmet, massajado, criado em ambiente spa a ouvir música clássica e/ou relax! Decerto que tal porco teria sido mais bem tratado do que nós estávamos a ser. Não há como esperar o pior para valorizar o que nos calha no prato da vida.

Não tenho a certeza qual o filme que fomos ver mas, apesar de ter arriscado relatar um ou outro pormenor que não estou seguro de ter acontecido (tendo, no entanto, tudo o que se passou ocorrido de acordo com o espírito com que relatei), lembro-me da história da esplanada melhor do que da sessão de cinema que nos levou até ali. Afinal, é essa história que vale a pena contar. A outra, podemos sempre sacar da net.
Nunca lá voltei para comer; apenas para um café. O empregado era o mesmo. E sempre que regresso revivo aquele início de noite onde pude comprovar que chegar cedo compensa, e de que maneira!
Melhor do que a esplanada da Quinta, só o ‘Made in Correeiros’. 


Marinha Grande, 10 de Novembro de 2018

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