Há muito, mesmo muito
tempo, a ideia acompanha-me. A propensão para, desde cedo, fazer listas e
contagens das coisas boas e menos boas da vida tem dado os seus frutos: ajuda a
fixar a memória na verdade, deixando à criatividade todo o espaço para voar. No
entanto, estas “cábulas” formam uma milionésima parte dos acontecimentos que
vivi. E se Deus guardasse, para cada um de nós, um livro com todas as
estatísticas da nossa vida? Todas mesmo, desde aquelas que eu próprio guardei,
como as notas de algumas cadeiras durante o percurso escolar, os livros que fui
lendo, a idade em que os li, o registo do tempo trabalhado durante o período de
teletrabalho ou os gastos que tenho vindo a despender em cada rúbrica da vida…
até àquelas que nunca registei, mas que por vezes tenho curiosidade em aferir
se a estimativa que faria, caso me debruçasse sobre o tema, corresponderia à
realidade. Cabem neste conjunto todas as outras experiências listáveis numa
vida (foi uma definição semelhante de “conjunto” que conduziu ao paradoxo de
Russel mas esqueçamos os paradoxos para esmiuçarmos o quotidiano até ao
infinito): quantos filmes vimos, quantos filmes vimos por idade, quantos filmes
vimos por sala, por sala e idade; quantas vezes fizemos amor, pela frente, por
trás, pela boca ou pelo cu; quantas vezes dissemos a palavra “Foda-se”,
“Canibal” ou “Matraquilhos”, quantas vezes o fizemos a gritar, a sussurrar, a
rir ou a chorar; quantas vezes nos rimos, chorámos; quantas vezes comemos
enguias ou bitoque, bolo de bolacha, bife tártaro ou carne estragada; quantas
vezes vomitámos na vida, quantas vezes vomitámos comida ou palavras estragadas;
quantas vezes cagámos, cagámos sangue ou pintámos à pistola; quantas
vezes disparámos uma arma, quantas vezes disparámos uma arma a sério, uma arma
de brincar, quantas vezes jogámos à bola, quantos chutos, quantos golos,
caneladas, joelhos esfolados…
Deus terá certamente tal
livro contendo todas as estatísticas das vidas de cada um de nós, mas há
problemas nesta concepção. Desde logo o facto de ter deixado de acreditar n’Ele
há uns doze ou treze anos. Resta-me assim fazer fé que, num futuro mais ou
menos longínquo, entremos todos – mortos e vivos – nalgum buraco negro e tudo
isto dê uma volta tal, não só o espaço e o tempo, mas também a memória, e o
livro surja, límpido, pronto para nos demonstrar quão erróneo é o olhar que
depositamos sobre tudo o que nós próprios fazemos.
Do tempo já sabemos
que nos atraiçoa a toda a hora – Já foi há dez anos que ele morreu?; Foi
ontem que ouvi essa notícia? Ia jurar que foi a semana passada… – e isso
acontece porque temos registos, provas, estatísticas que não nos deixam
prosseguir no engano caso os registos não fossem possíveis – como o compasso de
Euclides, que nenhuma medida guardava na memória mal era levantado do papel.
Todos temos sonhos e
fixações mais ou menos estapafúrdias – acredito nisso talvez para me desviar do
caminho da loucura – e esta nem será das ideias mais estranhas. A necessidade
ou a simples curiosidade em conferir alguma ordem a este caos que as nossas
vidas alargam, vem com alguma naturalidade. A Ciência parte também dessa ideia
de catalogar, estudar, agrupar e relacionar. A ideia acompanha-me pelo menos
desde a adolescência, quando à noite sibilava rezas numa sequência matemática,
independentemente do peso do sono, em favor de A, B e C, as lenga-lengas todas
que sabia – Pai Nosso, Ave Maria, Confissão, Anjo da Guarda e Acto de
Contrição. Toda a carne no assador, várias vezes cada peça de acordo com a
força do desejo, e falava com o Deus que então me visitava, sobre o número de
vezes que tal acontecimento tinha sucedido, e do esforço para contar antes que
o esquecimento os apagasse para todo o sempre, a menos que Ele os
guardasse no Livro.
Mais tarde, percebi
haver mais gente a idealizar “O Livro”: aos vinte e dois anos, quando li O
Homem que Só Gostava de Números (só sei que o li aos vinte e dois porque
tenho registado na BD das minhas leituras), maravilhosa obra de Paul Hoffman
sobre o matemático húngaro Paul Erdos, notei que também este chanfrado
acreditava que Deus – o “Supremo Fascista” (SF), nas suas palavras – possuía um
livro. No livro que Erdos colocava nas mãos do SF não estavam só as
demonstrações de todos os teoremas matemáticos alguma vez resolvidos ou por
resolver (conjecturas) mas as mais bonitas, elegantes e parcimoniosas. Sempre
que uma demonstração que poderia ser deduzida em meia página era apresentada em
três, trinta ou trezentas páginas, Erdos sentenciava: “Essa não vem
directamente do «Livro»”. Somente as demonstrações que aliavam a estética
ao rigor constavam no livro.
Nem o meu livro trata
de demonstrações matemáticas (embora também esse livro eu gostasse de
consultar), nem eu sou tão alienado (ou inteligente) como Erdos. Contudo,
prefiro o meu livro. Ou o livro que eu gostaria de consultar. A estatística
completa de cada ser humano, trabalho impossível para nós, evitaria tantas
concepções erradas acerca do mundo, de nós próprios e dos outros. Evitaria
tantas discussões e mal-entendidos. Desarmaria tanto os argumentos populistas, como
os cínicos, a dialética como a retórica; apenas factos, sem espinhas nem
números martelados. Claro que esses seriam os efeitos secundários deste livro
desejado. Eu só o queria mesmo por curiosidade. Curiosidade em olhar para trás
com verdade; observar o percurso feito e, sabendo-o passado, único e
irrepetível, entender melhor a forma como me trouxe até aqui e agora.
Rinchoa, 29 de Agosto de 2021
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