O João e a Filha da Puta

 Preâmbulo

Chamávamos-lhe “João Padrinho”, apesar de ele ser apenas meu padrinho e não de qualquer uma das minhas irmãs. Há quatro anos escrevi sobre ele e a doença que o atacava, um texto que decidi não publicar na altura.

Soube há pouco que, depois de anos de uma luta inglória, ingrata e injusta, o João morreu. O João era força e vida, era iniciativa, era energia vibrante que punha tudo em volta a mexer. 

Não éramos próximos, mas recordo os aniversários da infância e primeira adolescência, os longos jantares primaveris lá por casa, que batiam com o final do campeonato, com o Festival Eurovisão da Canção ou outro evento de "fim de época". Foi numa dessas noites que vimos o Benfica vencer o Sporting por seis a três, no dia 14 de Maio de 1994 (fomos adversários). No ano anterior, parámos a refeição para ouvir com respeitoso silêncio a Anabela cantar A Cidade Até ser Dia

Talvez as palavras de há quatro anos reflictam melhor o sentimento que me ficou pouco depois de o ter visto pela última vez.

 

O João e a Filha da Puta

Foi sempre muito brincalhão.

Uma vez num almoço o meu pai olhou para ele, do outro lado da mesa, e estava com um auricular no ouvido e o microfone preso até meio da cara. Não tinha dado qualquer sinal, mas sim prosseguido a conversa como se nada fosse. Os bons humoristas são assim, não anunciam a piada, mas deixam-na permanecer tanto tempo quanto aqueles que por ela são surpreendidos permitem. Ao fim de algum tempo, o meu pai lá percebeu tratar-se do aparelho auditivo colocado ao contrário, com a parte que deveria ficar escondida por trás do ouvido descendo até meio da cara. Um microfone. Como se nada fosse.

O meu padrinho foi sempre um brincalhão.

Os padrinhos são as escolhas que os nossos pais fazem para garantir a educação cristã dos filhos em caso de ausência destes. Com o tempo, a religião foi perdendo peso e a honra de se ser escolhido para padrinho é hoje uma das provas maiores de amizade. Não quer isso dizer que padrinho e afilhado venham a desenvolver ao longo da vida uma relação próxima. Nunca tive uma relação próxima com o meu padrinho, mas formei dele a imagem de alguém enérgico, com grande sentido de humor e uma enorme pureza de intenções. O facto de ter sido professor de educação física e estar muito ligado ao desporto escolar ajudou a formar essa ideia “pública”, pois em privado, além dos jantares de aniversário, poucas imagens tenho dele (um casamento, um almoço lá em casa…). Cruzávamo-nos, entre os meus dez e os quinze anos, durante o segundo e terceiro ciclos, nos corta-matos concelhios e na estafeta da muralha, provas em que ele marcava presença na organização e eu como atleta.

É das pessoas que conheço há mais tempo para lá da família (se calhar um padrinho é família, não sei). Além do meu baptizado e dos jantares que mencionei, via o João nos tempos em que foi instrutor de judo no Externato Príncipes de Aviz, a colégio da minha primária e onde a Teresa, a mulher do João, era professora. Entrou quando eu deixei as aulas da modalidade, depois de um ano ou dois em que consegui não largar o cinturão branco (eu tinha jeito).

Por vezes os padrinhos têm destas coisas: mantêm-se presentes nas nossas vidas muito pela amizade que ocupam no coração dos nossos pais, neste caso do meu pai. O João lembra-se das brincadeiras da juventude quando à noite percorriam a pé a marginal até ao Deck ou até Cascais: o anúncio cartão da Ambre Solaire com a menina que viravam para os carros, fazendo estes parar, pensando tratar-se de algo mais do que espalhar bronzeador, ou o caixote que ele largou no caminho contendo dentro um enorme calhau, depois de topar vir um tipo atrás a pontapear tudo o que encontrava… claro que lixou o pé diante do apetitoso e inocente caixote. E provavelmente muitas outras histórias que perdem a graça assim descritas em jeito telegráfico, mas que ganham vida quando relembradas pelos intervenientes. O João lembra-se.

Do que o João foi deixando de se lembrar foi de outras coisas. Umas mais recentes, outras que, pela força do hábito, fomos deixando de pensar sobre elas, arrumando-as no lugar do piloto automático que tantas vezes orienta o nosso cérebro.

Creio que a primeira vez que deixou de se lembrar (ou pelo menos que eu soube disso), foi num passeio com o cão em que o João se desorientou, tendo chegado a casa tarde, nervoso e muito baralhado. Exames médicos e um dos diagnósticos mais filhos da puta do nosso tempo carimbou a sua vida daí em diante. Um palavrão que carrega um peso mil vezes maior do que o “filho da puta”. Poderia usar outros impropérios mais atravessados, que continuariam a ser aprendizes quando comparados com o diagnóstico que calhou ao meu padrinho: Demência dos Corpos de Lewy. As duas partes do nome da doença assustam, a primeira por sabermos bem demais o que significa e a segunda por desconhecermos completamente. Assustamo-nos quando nos escrevem a palavra “Alzheimer”, mas nesta trataram de a cunhar com o carimbo “Demência” para não irmos ao engano. Não vale a pena aprofundar muito a explicação sobre esta doença, não é agradável. O destino fica traçado e a vida afunila, o contra-relógio contra o qual todos competimos pode nem ser abreviado, o que fica visível é a contagem do tempo e isso é o que nos assusta. Uma das maiores razões por que a vida vale tanto a pena é desconhecermos o instante seguinte. O João tem vindo a desconhecer progressivamente instantes passados. Podem não ser memórias, mas procedimentos, lugares, cálculos…

Fui almoçar com ele e com o meu pai quando a filha da puta estava ainda no princípio. Mesmo hoje, o meu padrinho e o meu pai continuam a almoçar às quartas-feiras na Adega do Monte, com ele muito mais presente do que ausente, prova de que as verdadeiras amizades superam muitos obstáculos (talvez seja lírico, mas gosto de acreditar que é assim).

Continuo agarrado à imagem do João com uma energia imensa. Uma vez encontrei-o em Cascais, no curto período em que pratiquei Orientação. Ele estava ligado ao desporto concelhio e à organização da prova. Cheio de vida no olhar e força na voz. Talvez por isso esta puta impressione mais, pelo contraste que vai destapando na nossa vida entre a pessoa que fomos e a aquela em que nos vamos tornando. A velhice não precisava de vir com este brinde, no entanto, visto de fora, à distância e através do olhar da criança e adolescente que via o João de vez em quando enquanto crescia, creio que ele tem aproveitado bem a vida e que fez por merecer a sorte que lhe calhou, com a família que construiu com a Teresa, o João e o Pedro (os filhos), bem como com os irmãos, e podia seguir por aí fora arrebanhando os amigos da geração do meu pai que conheço, para atestar (e se calhar me conformar) que o João tem sorte com o que tem vivido. Aproveitou e continua a aproveitar.

Agora não é mais brincalhão e talvez essa seja a grande diferença para quem, como eu, está de fora.

O pequeno episódio que iniciou este testemunho teria graça se tivesse ocorrido há vinte anos. Mas aconteceu na quarta-feira passada, no habitual almoço de quarta-feira. Contou-me o meu pai num relato sentido. Não imagino o que seja ver um amigo de muitas décadas ausentar-se temporariamente sem deixar de estar na nossa presença. O aparelho auditivo foi mesmo mal colocado, mas não pelo humor que poderia ter originado aquela brincadeira noutra vida. Talvez seja uma forma de o meu padrinho lhe dizer (à vida), que mais do que ouvir, ele ainda sabe falar. Talvez o microfone não consiga resgatar as palavras que ficam aprisionadas algures no seu cérebro, num lugar que até o próprio desconhece, mas pelo menos luta para pôr o microfone; todos os dias.

Caparide, 19 de Dezembro de 2020


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