O Anjo Branco

 


Conheci-a quase sempre de bata branca, uma vida de branco a cuidar dos outros, fosse no centro de enfermagem do Monte Estoril, Rua do Viveiro, cujo nome foi caindo com o tempo, substituído por Vou à Enfermeira Conceição, fosse nos domicílios que fazia sempre que não se encontrava no centro, nas casas que visitava ou no convento onde tratava as freiras, que eram já suas amigas.

Toda a gente era amiga da Enfermeira Conceição, do mais Pé Rapado ao Presidente da República, e ela lá ia cuidando de todos, de nós todos, a todos oferecendo o mesmo sorriso e energia, entrega e profissionalismo, uma vida de missão que abraçou e na qual se realizou, julgo que pouco depois do divórcio.

A Enfermeira Conceição era irmã do sr. Abílio, e cunhada da dona Celeste, meus vizinhos desde os cinco anos, e, portanto, desde sempre. Foi através deles que a fui conhecendo, de criança até hoje passaram trinta e oito anos; pelo meio, muitos tratamentos e pensos após uma simples operação que entre 1997 e 2006 se repetiu por quatro reincidências. Tratamentos simples, mas demorados (nas duas últimas, 1999 e 2006, a ferida demorou seis meses a fechar), que a Enfermeira foi tratando, limpando, desinfectando, cauterizando, sempre com cuidado. Nunca levou um cêntimo.

Tratava-nos as maleitas do corpo, mas tinha sempre uma palavra amiga para as dores da alma – e se levei algumas para a marquesa! Fez do lufa-lufa o seu modo de vida, uma João Semana dos tempos modernos com a entrega de antigamente, cuidar dos outros esquecendo-se por vezes de si, de almoçar, de se tratar, e no entanto, encontrou-se nessa forma de estar para os outros. Já não há quem se faça conhecido sem querer nem vaidades, pelo amor ao próximo, consequência inadvertida ao alcance dos mais puros.

A Enfermeira Conceição era dona de uma Fé inabalável, daquelas fés que invejo, e que em tempos tive, ou talvez não, pelo menos daquela forma tão alegre a apaixonada não me recordo de ter tido. Agora que a perdi, talvez para sempre, vejo-a, à Fé, nela, e como a Enfermeira a transformou, de lá das alturas para uma Fé nas pessoas cá em baixo, naqueles que tratava, nos médicos que a conheciam e nas centenas, milhares que lhe ficámos agradecidos para sempre sem agradecimentos suficientes para lhe pagar o bem que nos fez.

O sr. Abílio e a dona Celeste subiram na escala dos afectos para a condição de (grandes) amigos sem nunca terem perdido o epíteto de vizinhos. Muitas conversas partilhadas, foram testemunhando os episódios mais marcantes das nossas vidas, no andar de baixo do Cantinho do Céu, curioso nome da vivenda que nos albergou a todos naquelas décadas em torno da mudança de milénio. A Enfermeira era presença nos almoços de domingo, sempre depois das 14h, quando largava o turno do almoço no Centro de Enfermagem. E a família aguardava por ela para a mesa ficar completa e o almoço ter início.

Não parecia trazer consigo os 86 ou 87 anos de vida, mas foram os que conseguiu completar antes da máquina começar a vacilar. Foram dias em Cascais, e depois em Santa Cruz, para onde foi transferida, até nos deixar, no domingo passado.

Poucos merecem deixar a vida, ainda que este juízo sirva mais para nós, que ficamos, do que para quem parte: poucos merecem que deixemos de testemunhar a sua vida entre nós, mas essa é uma equação que dificilmente resolveremos em tempo útil, o tempo de uma vida. A Enfermeira Conceição não merecia ter partido assim, tão rápido, tão cedo, na juventude dos oitenta anos de criança com que nos presenteou. Uma criança cheia de sabedoria, aquela sabedoria de quem aprendeu a colher os frutos que a vida foi deixando amadurecer à sua passagem.

Tantos de nós que fomos tratados, quase mimados, por esta criança com um coração tão grande como o mundo de que agora se despede, em nós, que nos despedimos dela. Gerações que tratou, famílias que foram passando pelas suas mãos, avós, filhos, netos. E um amor que colocava em tudo o que fazia que quase nos envergonha. Se a palavra Humanista procurasse um sinónimo numa só pessoa, encontrá-la-ia na Enfermeira Conceição, do Monte Estoril, e na bonita vida construída por esta Senhora.

Obrigado Enfermeira.

 

Rinchoa, 10 de Janeiro de 2025

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