Quando elas vinham...

Nos idos tempos da escola preparatória, pela Primavera, tinhamos a visita anual de uma classe ilustre lá em casa.
Normalmente apareciam na hall de entrada (é a única divisão da casa cujo chão é ainda forrado de tacos de madeira), espalhando-se de seguida por toda a casa. Nas restantes divisões a proliferação não era tão fácil uma vez que muitas estavam forradas de tapetes ou alcatifas. Falo, claro está, da formiga-de-asa.
Esse mutante nojento, que nem é mosca nem é formiga, resolvia fazer a sua aparição no início do tempo quente, alastrando rapidamente a toda a casa.
Bons tempos! Insecticidas, vassouras, aspiradores, pás, chinelos, ... tudo servia para o ataque ao exército dos pequenos invasores.
O mais estranho é que esses imitadores de Starship Troopers nem sabiam voar bem: pareciam-se mais com o Neil Armstrong aos saltinhos na Lua... um pouco mais prolongados, agora voar... está quieto!
Tenho saudades da repugnância que me causavam! A sério que tenho!
Que bom era berrar para os meus pais quando eu ia debaixo da escada buscar um rolo de cozinha e lá vinha o exército primaveril a marchar alinhado, pelo hall adentro. Calcava-lhes as fileiras com quanta força tinha (só mais tarde percebi a estupidez de tal gesto: não necessitava de fazer uma força especial... o meu peso teria sido suficiente para o genocídio em marcha).
Era um fartote de asas a esvoaçar pela entrada, qual nuvem de pó num sótão bafiento. As que escapavam às primeiras investidas dos sapatos assassinos, era um "ver se te avias" para escaparem ao carimbo fatal vindo do céu.
Às que o conseguiam, estava reservado o plano B: guerra química: Baygon ou Raid e ficavam a estrebuchar nas junções dos tacos, qual gás mostarda nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.
Por fim vinha a limpeza final: o aspirador.
O aspirador era o requinte em forma de tortura, a cereja no topo do bolo. Valioso espécime dos primeiros exemplares, o aspirador da Vivenda Cantinho do Céu era uma espécie de martelo pneumático, só que barulhento. Assim, antes de serem sugadas para o saco onde não mais veriam a luz dos dia, aquelas borboletas mirradas ficavam surdas. Nenhuma câmara de horrores se lembraria de ter tal subtileza para exposição.
Casa limpa, resto da época de sol descansada.
Mas os micro-ratos não deviam muito à inteligência... voltavam sempre ano após ano. Os poucos sobreviventes, das duas uma: ou, de tão traumatizados que ficavam não passavam a palavra à geração seguinte, ou acreditavam que podiam mudar o mundo e persistiam corajosos.

  • Acredito mais na segunda possibilidade pois, como dizia Atticus Finch, o advogado sulista de Não Matem a Cotovia, "... queria que visses o que é a verdadeira coragem para não julgares que a coragem é um homem de arma na mão. Coragem é, quando sabemos que estamos vencidos antes de começar, começarmos, apesar de tudo, e irmos até ao fim, aconteça o que acontecer. Raras vezes se ganha, mas às vezes é possível ganhar."

  • PS: Toda a história tem uma moral.



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