Jivago, poeta e romântico

Embora corra o risco de que este post fique (de novo) demasiado longo, tenho a certeza de que não conseguirei dizer tudo o que penso e quero dizer sobre este filme.

Dr. Jivago (Doctor Zhivago, 1965) é uma das obras-primas de um dos maiores mestres do cinema: David Lean (provavelmente escreverei sobre ele brevemente).
Com a consciência de que devo ter entendido não mais de 20% ou 30% da história da primeira vez que o vi, devia ter uns 11 ou 12 anos, houve pelo menos 2 imagens (ou cenas) que nunca mais esqueci: a fuga de comboio pelas inóspitas estepes siberianas (filmada em Espanha, nos arredores de Madrid), e o maravilhoso palácio de gelo, um dos trabalhos que concedeu a John Box o Óscar para a Direcção Artística.
Dr. Jivago tem tantos aspectos por onde eu poderia pegar, que este texto não terá qualquer fio condutor… apenas deixarei que a escrita corra ao sabor das ideias e das lembranças que tenho de um filme que irei rever em breve.
A força das imagens é uma marca dos filmes de Lean, um dos maiores fazedores de “Épicos” de sempre. Em Dr. Jivago, essa marca está mais apurada que nunca, e a atenção aos detalhes, quer no que respeita à recreação da época (Óscar para Guarda-Roupa e Direcção Artística) quer no que toca à visualização global da estética (Óscar para Fotografia), quer no acompanhamento (Óscar para Maurice Jarre e o inesquecível “Tema de Lara”), é do que de melhor foi feito por Lean, embora o filme, como um todo, não tenha caído no gosto dos críticos (algo que o sucesso de bilheteira apagou).

Aquando da filmagem de uma cena revolucionária, A Internacional foi ouvida em plena Espanha de Franco. Alguns habitantes da localidade de Soria, que não sabiam das filmagens, preparavam-se para celebrar a “libertação” quando a polícia espanhola apareceu. Embora os membros do staff explicassem que se tratava da rodagem de um filme, a polícia não arredou pé: queria saber quem sabia de facto a letra… e os figurantes recusaram-se a cantar.
Tinha eu uns 15 anos quando dei a Revolução Russa na escola. Foi por essa altura que vi o filme pela 2ª vez, e foi um dos casos mais explícitos (no que respeita o cinema, obviamente) em que verifiquei que há idades para tudo (“idades” é aqui uma força de expressão, poderia dizer “fases da vida”), e neste caso, tirei partido do filme como um todo, de um modo muito mais satisfatório.
E se o ambiente político em que se situa a história foi um dos pontos com que enriqueci a minha compreensão desta obra, a assimilação da história de amor, vista pelos olhos sofridos de Jivago, um homem dividido entre Tonya, a mulher, e Lara, o grande amor que nunca foi seu totalmente, completou o que me havia escapado na primeira visualização.
A Revolução Bolchevique é o pano de fundo onde se desenrola a história de Yuri Jivago, um médico que era também um poeta. Jivago, vê os acontecimentos à sua volta sob a sensibilidade velada dos olhos de um artista, de um homem com o olhar vidrado pela tristeza com que via o destino de um país, e pelo sofrimento com que lutava pelo Amor da sua vida.
Numa outra nota fantástica de bastidores, Omar Sharif confessou uma noite a David Lean que estava preocupado com a apreciação que ouvia o staff fazer a respeito do trabalho dos seus colegas: “Rod Steiger era fantástico”, “Julie Christie era maravilhosa”, “Tom Courtenay estava genial”, “Geraldine Chaplin estava soberba”, e que não ouvia a respeito do seu próprio trabalho. Lean respondeu-lhe que queria Jivago como um observador da história que decorria à sua volta: Jivago era um poeta, um homem sofrido, e era, por isso mesmo um observador. Lean terá dito: “Se eu tiver razão, as pessoas pensarão, durante o filme, que Steiger, Courteney, Christie ou Chaplin estão fantásticos, mas, quando o filme terminar, é de Jivago que as pessoas se lembrarão”. Como Lean tinha razão… é o distanciamento e a capacidade de ver mais além, que alguns possuem.

Dr. Jivago traz-nos também uma das mais belas histórias de Amor do cinema (e da literatura). Jivago era a personificação do autor do livro, Boris Pasternak, impedido de receber o Nobel pelas autoridades soviéticas. Pasternak foi “forçado” a trabalhos de tradução durante boa parte da sua vida devido às suas divergências com o regime comunista. Consistindo o seu trabalho maioritariamente em poesia, Dr. Jivago foi o seu último trabalho e foi a obra que lhe valeu o Nobel, que lhe tomou 10 anos da sua vida literária, e no qual retratou a história de Amor da sua própria vida.
Para além da realização, e do elenco, já referidos, é impossível dissociar Dr. Jivago da sua banda sonora. “O Tema de Lara” tornou-se num dos mais clássicos temas do Cinema de todos os tempos. Maurice Jarre ganhava o seu 2º Óscar (todos os 3 óscares da sua carreira resultaram de colaborações com David Lean), e a melodia, escrita a pensar no amor e não na política, como que ganha uma nova dimensão quando apresentada a acompanhar as imagens do Inverno soalheiro em que o filme foi filmado.

Desde então já vi o filme mais uma ou duas vezes, e sempre com a satisfação de ver um retrato histórico sem que a história (de Amor) seja um pretexto mas sim a razão de ser do filme. Porque acontece muitas vezes a história principal estar despida de todos os adereços histórico/secundários que a deveriam compor, ou o contrário: a recriação envolvente não é acompanhada com uma história à altura. Em Dr. Jivago, os dois aspectos estão muito bem balanceados, sendo os méritos de tal ocorrência repartidos pelo autor da obra (Pasternak) e Robert Bolt, que adaptou o livro de Pasternak e foi com isso premiado com um Óscar.
Contudo, Dr. Jivago nunca poderá ser desinserido do ambiente em que a sua história ocorre. A obra tornou-se numa das imagens literárias da Revolução Russa e o filme uma das obras maiores da 7ª Arte.

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