… ou viagem ao interior de uma sociedade contemporânea?
Nota: comecei este post antes de ter visto o filme Viagem a Tóquio (Tôkyô monogatari, 1953), num tom mais irónico do que sério. Quando as palavras foram dando forma à opinião, o texto levou-me para uma reflexão Ocidente-Oriente, e resolvi reescrevê-lo retirando ou suavizando a ironia, por considerar não haver espaço para a brincadeira perante o que eu tinha acabado de escrever.
Depois de ver o filme, continuei o texto (na verdade, escrevi a primeira parte do post em último lugar), e confirmei que não me enganei ao ter alterado o tom. Não sei se conseguirei exprimir tudo o que senti com este filme, mas, resumindo: é um dos melhores filmes que já vi.
Aquando da nova lista dos melhores filmes de sempre da revista Sight & Sound, Viagem a Tóquio chamou-me a atenção: embora tenha uma vaga ideia de já ter ouvido este título, nada sabia sobre ele.
Descobri que o realizador, Yasujiro Ozu, é só um dos mais importantes realizadores japoneses de sempre (talvez ultrapassado apenas por Akira Korusawa, de quem nunca vi nenhum filme).
Viagem a Tóquio é um filme genial sobre conflitos e contrastes: se a dicotomia campo-cidade é secundarizada pela vinda dos pais, que resolvem ir visitar os filhos a Tóquio, a qual tudo de estranho oferece a quem está habituado à calma do interior, o contraste entre gerações é o ponto sensível deste filme. E estamos a falar do Japão em 1953. Há quase 60 anos, e quando as marcas da guerra estavam ainda muito presentes, o relegar dos “velhos” para segundo plano era já uma realidade.
A memória da História tem destas coisas: adultera a realidade de uma forma mais eficiente do que a revisão e reedição orquestrada minuciosamente por qualquer ditadura. A ideia que formamos de uma realidade que, provavelmente nunca foi representativa, de que os nossos pais respeitavam muito os seus próprios pais… mais do que isso… a ideia que formamos de que os orientais respeitavam, pelo menos há 60 anos, as gerações anteriores e o quanto sentiam o conceito de família… tudo isto foi para mim posto em causa com este filme.
- Fico feliz por ter vivido até este dia. O Mundo mudou tanto…
- Mas vocês não mudaram nada.
- É claro que mudámos: somos velhos agora.
Não tenho visto este tema muito trabalhado em cinema (o único filme onde vi este assunto tratado foi um filme brasileiro de 1970 – Em Família)… talvez por ser um tema que envergonhe muita gente (eu incluído). No que respeita a “problemas domésticos”, é mais fácil retratar a droga, a escola, a doença, … assuntos que, embora nos possam atingir de uma maneira generalizada, não se pode atribuir um verdadeiro sentimento de culpa, porque não há um responsável explícito (a não ser, e em casos muito particulares, aquele(a) que sofre).
Com a entrada na terceira idade, e o modo como lidamos com a debilidade crescente dos nossos pais, o facto de ser algo que nos diz directamente respeito, com que nos confrontamos e perante o qual temos que assumir uma posição, leva-nos, muitas vezes, ora a disfarçar, ora a endurecer, ora a tornarmo-nos indiferentemente insensíveis, a pior das atitudes.
- Olha o quanto Tóquio é grande!
- Sim…
- Se nos perdermos… nunca nos encontraremos novamente.
A vergonha que os filhos têm dos pais é algo que, sendo comum na adolescência, não deveria ser normal prolongar-se pela idade adulta. A falta de reconhecimento que os pais não encontram nos filhos foi algo que me impressionou nesta história.
- Quem são eles?
- Apenas uns amigos do interior.
Isto é uma filha a falar dos pais…
Apenas a nora, Noriko, cujo marido havia morrido 8 anos antes na guerra, mostra um verdadeiro carinho e reconhecimento pelos mais velhos. Ela, possuidora de uma humildade que contrasta com o egoísmo dos filhos de sangue, é incentivada, primeiro pela sogra e, mais tarde, pelo sogro, a refazer a vida, prova de que a geração anterior, embora não tenha perdido o afecto que os classifica como seres humanos, sabem ser justos e, porventura, mais compreensivos do que os filhos que criaram.
A forma como os pais vêm o sucesso dos filhos é primorosamente retratado numa conversa tardia num bar de Tóquio, com uns sakés a mais, bebida que teve o condão de libertar o espírito e levar três conterrâneos a explicitar o modo como viam o sucesso aparente dos filhos, para, no final reconhecerem, que aquilo que aparentemente valorizavam nos filhos, não passava de uma aparência: os valores que realmente importam, os filhos perderam.
- Acho que tu és o mais sortudo de todos.
- Porquê?
- Porque tens bons filhos e filhas de quem te orgulhar.
- Tu podes orgulhar-te dos teus também.
- Não, o meu filho não é bom. Foi dominado pela mulher e trata-me como se eu estivesse senil. É um nada.
- Mas chefe de departamento é uma boa posição.
- Chefe de departamento nada! Ele é só um assistente. Fico tão decepcionado... que minto às pessoas. Ele é um fracasso.
- Não digas isso.
- Ele é o meu único filho, e fui mole com ele - isso arruinou-o. Tu educaste bem o teu filho. Ele tem um diploma.
- Mas todos os médicos têm que ter diplomas.
- Eu temo que esperemos demais dos nossos filhos. Falta-lhes carácter, falta-lhes ambição. Eu disse isso ao meu filho. Ele disse que há pessoas a mais em Tóquio... que se torna difícil triunfar. O que é que achas? Os jovens hoje não têm firmeza. Onde está o carácter deles? Não foi assim que o criei!
(…)
- Entretanto, até eu vir para Tóquio, eu estava com a impressão de que o meu filho estava a ir bem. Mas percebi que ele é apenas o médico de uma pequena vizinhança. Eu sei como te sentes. Eu estou insatisfeito como tu. Mas não devemos esperar muito dos nossos filhos. Os tempos mudaram. Temos que encarar isso. Isto é o que eu acho.
- É mesmo? Percebo. Tu também!
- O meu filho mudou muito, mas não o posso ajudar. Além do mais, há pessoas a mais em Tóquio.
- Tens razão...
- Acredito que eu deva ser feliz.
- Talvez estejas certo. Hoje em dia alguns jovens matam os seus pais sem mesmo pensar. O meu pelo menos não poderia fazer isto.
O amor dos pais é assim mesmo: incondicional, e neste filme esse aspecto é maravilhosamente retratado. Mesmo sendo constantemente vistos como um estorvo (a expressão “Que problema” aparece inúmeras vezes nas bocas dos filhos referindo-se aos pais), os pais nunca perdem a alegria com que olham para os seus filhos. E alguns nem sabem a idade da mãe!
Não sei se este amor é um exemplo supremo de dignidade se da falta dela. Embora acredite na primeira hipótese, custa ver um pai ser assim tratado… e o pior é que não há ofensas verbais ou físicas… podíamos ser nós próprios a tratar os nossos pais assim. Só que visto de fora, o egoísmo dos nossos dias, que dura há 60 anos, torna-se mais explícito… e doloroso também.
- Têm sido muito bondosos connosco… todos vocês.
- Foram tão bons connosco, crianças.
Esta despedida dos pais quase que arde, pese toda a positividade com que agradecem aos filhos. Só vêm o bem, expresso não só na sincera gratidão que lhes mostram, como no modo carinhos como tratam os filhos já bem adultos: “crianças”.
É um filme “brutalmente actual”. Poderia contar uma história de ontem.
A câmara, colocada constantemente ao nível do chão, filma os intervenientes ajoelhada perante a sua altivez. Porque, se no Japão, muito da vida doméstica se faz no chão, é do chão que estes pais olham para os filhos, numa atitude de compaixão consentida, quase tão irreal quanto a bondade de Noriko.
Mesmo quando os pais fazem o balanço da sua visita a Tóquio, e embora mostrem que são muito mais perspicazes do que os seus sorrisos bondosos poderiam fazer supor, colocam os filhos sempre em primeiro, incondicionalmente.
- Em dez dias teremos visto todos os nossos filhos. E netos crescidos também.
- Alguns avós parecem gostar mais dos seus netos do que dos seus filhos. O que achas?
- E tu?
- Eu gosto mais dos meus filhos. Mas estou surpreendido como as crianças mudam. Shige costumava ser mais bondosa antes. Uma filha casada é como um estranho.
- Koishi mudou também: ele era um bom garoto.
- Os filhos não vivem para agradar aos seus pais. Vamos apenas ser felizes pois eles são melhores do que a maioria.
- Eles certamente são melhores do que a média. Somos afortunados.
- Também acho. Deveríamos considerar-nos sortudos.
- Sim, somos muito sortudos.
Após o festival final de hipocrisia (a roçar a maldade), mais uma vez, Noriko é colocada frente aos filhos “legítimos” e, mais uma vez, estes perdem a oportunidade de se redimirem, não conseguindo fugir à condição que criaram para si próprios.
- É estranho. Nós temos os nossos próprios filhos, mas foste tu que mais fez por nós, e nem és mesmo nossa parente. Obrigado.
A intermitência Oriente-Ocidente
Ozu, neste filme pelo menos, nada tem daquela presunção que os ocidentais colocam nos orientais, presunção essa que, provavelmente nunca existiu senão na mente de alguns seres deste lado do mundo: “A serenidade (estóica) e a honra como atitude espiritual para purificação da mente e do espírito, que reduzimos a uma simples palavra: zen”, por contraponto a nós, os “depravados consumistas do ocidente”. “Contemplação, alimentação saudável, produtos naturais sem os malefícios dos químicos artificiais, longevidade…”. Por contraponto, nós, o “refugo do mundo” somos os potes de colesterol açucarados ambulantes, que passamos pela vida a 100 à hora sem perder (ou ganhar) tempo a apreciar a verdadeira beleza da vida.
Acontece que o Japão (como todo o oriente, de resto) ocidentalizou-se. E glorificam o ocidente, o que não deixa de ser curioso, quando no ocidente nunca se glorificou tanto a cultura ancestral oriental. Viagem a Tóquio expõe este conflito magistralmente: o fim da família e do respeito pela família (e estamos nos anos 50!).
Creio que esta “troca de valores” entre Ocidente e Oriente se deve a equívocos de ambos os lados: os orientais julgam que os ocidentais vivem muito mais realizados com todos os seus bens materiais e a cultura de massas, enquanto que os ocidentais olham para a gente do oriente como sendo os mesmos de há 200 anos, que se satisfaziam com pouco e privilegiavam o culto da espiritualidade em detrimento da materialidade. Acontece que nem os ocidentais se sentem realizados com a brutalidade do concreto nem os orientais são assim tão preenchidos com o abstracto. Ambos necessitam do complemento que a outra cultura desenvolveu.
E no centro de tudo: o dinheiro. O dinheiro de que os ocidentais estão fartos (por isso anseiam por uma fuga para algo transcendental) mas do qual não se conseguem livrar, porque traz não só conforto mas também a ilusão de conforto, é o mesmo dinheiro que os orientais anseiam, para ter aquela sensação de satisfação imediata que vêm num ocidental, o qual saltita de “divertimento” em “divertimento”, sempre em busca de novas e mais arrojadas experiências, desde que o dinheiro as possa comprar, numa dependência brutal de ocupação do tempo “livre”, como se o tempo tivesse que ser todo ocupado dessa forma.
É este choque cultural e geracional que é pintado por Ozu em Viagem a Tóquio, mas apenas do lado oriental, claro.
Um filme obrigatório, que de certeza me levará a conhecer a obra deste realizador, tão estranhamente sensível para um oriental (opinião desenvolvida pela minha ignorância).
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