Li há largos anos um livro de José Rodrigues Miguéis chamado Gente da Terceira Classe. Soube deste livro por um conto que dei na escola, estava eu no 7º ano, chamado Arroz do Céu (creio que o reproduzi neste blog há uns anos). Mais tarde, não me lembro em que ano de escolaridade (sei que foi antes do 10º), dei um texto que era parte de um outro conto do mesmo livro. Chamava-se Natal Branco. Tanto um texto como outro tinham vários pontos em comum que me apaixonaram: eram sobre gente pobre; eram sobre a vida de gente pobre; eram sobre a vida de gente portuguesa pobre; eram sobre a vida de gente portuguesa pobre a viver no estrangeiro.
Decidi que haveria de comprar o livro e assim aconteceu.
José Rodrigues Miguéis, ele próprio um emigrante, personalidade da esquerda intelectual e opositor ao Antigo Regime foi um dos representantes do neo-realismo português. Este livro, o único que li dele, é disso um exemplo sublime: histórias de gente pobre como o varredor das plataformas do metro de NY em Arroz do Céu ou os “limpadores” dos vidros dos Arranha-Céus da grande cidade, as suas vidas, as suas famílias e a entreajuda que existia entre a comunidade portuguesa que teve que começar a vida do zero no estrangeiro, em condições muitas vezes dificílima em Arroz do Céu.
Lembrei-me disto por, todos os dias “passar por profissões” que pouco ou nada têm de empolgante mas que merecem, ou deveriam merecer, o mesmo respeito do que qualquer outra profissão mais bem vista socialmente.
Com a manhã chuvosa como a de hoje, resolvi entrar na torre pela garagem para evitar a molha dos últimos 100m. Sempre que atravesso o piso -1 da garagem de uma torre para a outra, um segurança que mais não faz do que estar sentado numa cadeira a ver os carros passar cumprimenta-me. E olha-me nos olhos quando o faz. E vejo alguma alegria ou pelo menos algum sentimento de retribuição por um simples cumprimento (após 4 ou 5 cumprimentos, só hoje percebi que ele é brasileiro); as senhoras da limpeza que, de hora a hora vêm limpara as casas de banho ficam genuinamente contentes quando recebem um “bom dia” ou “boa tarde” e, inclusivamente, já temos feito conversa quando nos cruzamos no corredor ou nas casas de banho; o rapaz que limpa os elevadores e os vidros da entrada da torre em que trabalho é de uma simpatia quase que submissa. Hoje, ao dizer-me que tinha que ir a casa a correr (havia começado a chover bem) ofereci o meu guarda-chuva que ele de pronto recusou,
Todos os dias passo por uma ou mais destas pessoas e quase sempre me lembram várias coisas:
- A sorte que tenho em ter o trabalho que tenho;
- O exemplo que todos eles dão, através da simpatia e boa disposição que têm e oferecem no cumprimento do seu trabalho;
- A indiferença com que muitos de nós os tratamos, umas vezes por sobranceria, outras por submissão à rotina e outras mesmo por alguma vergonha, sinal de um problema mais sério da nossa sociedade;
- A importância de estudar e de ter tido condições para tal, sobretudo numa altura em que não vemos o fruto do estudo: podemos ter estudos e ter azar na vida, mas a probabilidade é menor e, apesar de tudo, creio ser sempre preferível termos gente preparada do que não preparada, seja em que profissão for (pelo menos é isso que elogiamos nos países nórdicos e em alguns países de leste);
- As disparidades que existem na nossa sociedade. Sem discutir causas, colectivas ou individuais, nem ideologias. Apenas constatar que existem disparidades brutais, e que não tendem a diminuir.
E mesmo assim, é com um sorriso ou com uma palavra de simpatia que esta “gente da terceira classe” me recebe todos os dias pelas 8:30 da manhã, quando, provavelmente já têm uma ou duas horas de trabalho por trás.
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