Kepler, iniciador de caminhos



À mesa em que escrevia estas impressões, olhava a claridade lá fora filtrada pela clarabóia pequena da casa. Não era branco nem azul… havia nuvens que não apagavam a luz de um dia de Verão, mas dissimulavam o azul celeste num cinzento claro, manchado de céu e algodão.
O universo que observava acabara de ver retratado no terceiro episódio do Cosmos e este foi, de facto, o primeiro que me havia fascinado profundamente. A segunda parte conta a história de um grande homem, que eu conhecia das aulas de Ciências, mas não lhe reconhecia a grandeza que lhe é devida: Kepler.
Einstein dizia, humildemente, que se havia “apoiado nos ombros de gigantes”, referindo-se aos génios da Ciência que o precederam e abriram caminho para as suas descobertas. Kepler terá sido, sem dúvida, um desses “gigantes”. Mais: Kepler teve poucos “gigantes” em quem se apoiar… Copérnico talvez seja um dos poucos, ao propor a teoria heliocênctica.
Kepler foi astrónomo e astrólogo. Na base, teve formação cristã: estudou num mosteiro protestante. Foi assim um iniciador de caminhos e possuiu a coragem que poucos assumem para colocar em causa as suas crenças e partir em busca do conhecimento que a realidade lhe apresentava.
A religião foi a primeira a ser colocada em causa, mas não o conceito de Deus: as regras feitas pelos homens eram o ponto de discórdia de Kepler. Deus estava presente nas Leis do Universo, fosse através da beleza do que havia criado, fosse através da “magia” com que construíra um universo que se comportava de acordo com uma linguagem tão bela como a matemática.
Depois, foram os seus próprios preconceitos a serem testados e, após muita luta (e frustração), abandonados, para serem substituídos por algo que viria a revolucionar a história da Ciência.
Lutando contra preconceitos exteriores e interiores, Kepler nunca deixou de ser quem era: Deus e a sua própria intuição continuaram presentes na sua vida… no seu universo.

Kepler lutou contra a forte oposição da igreja protestante, e a opinião do seu líder na Alemanha, Martinho Lutero. No que me diz respeito, desconhecia por completo o ataque à Ciência levado a cabo por cristãos não católicos, mas ele ocorreu de facto. Nas aulas de História haviam-me pintado a reforma da Igreja como uma obra levada a cabo por “seres iluminados”, que, só hoje percebi, tinham tão ou mais vistas curtas do que os senhores de quem se tentavam libertar. Houve livros queimados e opositores mortos ou deportados. Kepler sobreviveu.
No modelo heliocêntrico, Kepler, defendia um movimento dos seis planetas conhecidos (a Terra e mais cinco), ao longo de esferas concêntricas, cada uma delas apoiada num dos cinco sólidos platónicos. Um sistema bonito “aos olhos de Deus”. Quando teve acesso a dados empíricos mais precisos sobre a posição dos planetas, Kepler constatou não apenas que o seu modelo inicial não estava de acordo com a realidade, como nem sequer os planetas descreviam um movimento circular! Com um enorme esforço interior, Kepler concluiu que o movimento elíptico (sendo o Sol um dos focos da elipse) era perfeitamente reflectido nas observações registadas!

A génese das Leis de Kepler é um dos feitos mais notáveis da história do Conhecimento.
Kepler pôde maravilhar-se com a previsibilidade do Universo, com a beleza da linguagem com que ele lhe falava. Descobriu que a beleza por trás o observável não era tão imediata quanto inicialmente pensava, mas infinitamente maior… que havia uma ordem, independentemente do astro que estivesse no centro ou da forma do movimento que descrevia (mais tarde, a relatividade das posições dos astros e as correcções aos movimentos dos mesmos vieram conferir uma beleza ainda maior ao Cosmos, tal como o conhecemos).
A sua coragem e humildade para reconhecer os obstáculos nas crenças pré-concebidas e em si mesmo, e mudar de rumo, articulando o conhecimento que possuía com o que acabava de descobrir é um hino ao espírito humano… ao espírito universal.
Kepler foi um dos primeiros homens da Ciência a unir de forma indelével o conhecimento teórico e o conhecimento empírico: quantificou a realidade. E permitiu que outros pequenos seres pudessem, também um dia, ser gigantes.

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