Um Homem de Partes


A única motivação que eu tinha para ler esta livro ream as saudades que tinha de ler algo de David Lodge. Não que tivesse lido muita coisa, apenas dois livros (Um Almoço Nunca é de Graça, fantástico, e Um Dia o Museu Britânico Vem Abaixo, tema interessante mas não muito bem explorado).
Entre vários, um dos aspectos que mais admirei na escrita de Lodge foi o facto de, tratando temas muito pertinentes (no que toca ao conhecimento que tem que ter, quer dos comportamentos humanos, quer do background cultural necessário para descrever certas personagens (algumas reais) e situações) com uma linguagem tão acessível que me custa a crer que não tenha mais sucesso. Num certo sentido, lembra-me Somerset Maugham: um escritor brilhante mas que, por algum provincianismo de uma certa elite da época que nunca lhe quis dar o mérito que as gerações futuras haveriam de reconhecer, manteve-se classificado como um escritor de “qualidade média”. Estranho critério este em que, se é popular então não pode ser bom. Neste aspecto o Cinema está muito mais democratizado. A Literatura continua tremendamente elitista.
Voltando a Lodge, tratar temas mais ou menos complexos num tom ligeiro sem com isso abdicar dos aspectos fundamentais que pretende mostrar requer uma enorme arte e uma dose de inteligência acima da média. David Lodge constrói histórias muito interessantes para toda a gente.

Um Homem de Partes é uma biografia de 580 páginas (o meu regresso aos livros grandes) do escritor de ficção científica e pensador inglês do final do séc. XIX, princípio do séc. XX. H. G. Wells. Para além de A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos, nada mais eu conhecia sobre Wells. Neste momento, passada meia obra, posso dizer que o livro me está a prender por dois motivos, não sabendo eu qual deles é mais fascinante, se a escrita de Lodge se a vida de Wells.
Só ao fim de 150 páginas é que a coisa encarrilou, mas a descrição de uma mente verdadeiramente livre e a sua luta pela liberdade numa Inglaterra tacanhamente conservadora é de uma enorme beleza: o “Amor Livre” ou a emancipação feminina são disso exemplos.
H. G. Wells teve dezenas e dezenas de mulheres na sua vida. A sua relação com Jane, a mulher com quem esteve casado grande parte da sua vida foi de um liberalismo arrojadíssimo mesmo para os dias de hoje (de comum acordo, ele podia ter as mulheres que quisesse, fossem elas suas conhecidas ou não, visitas de casa ou não, suas amigas, filhas de amigas, etc…).
A época da Sociedade Fabiana, clube de pensadores percursor do Socialismo e plataforma dos intelectuais da época, que Wells tentou democratizar e abrir às massas é descrita com um brilhantismo sem igual.
George Bernard Shaw, Henry James, Edith Nesbit ou George Orwell são apenas alguns dos personagens que enriquecem esta história real e recriam um ambiente e uma época em que se lançavam os fundamentos do que viria a ser o pensamento dominante do século que começava.
Fiquei com uma curiosidade imensa para ler In The Year of The Comet, Anticipations ou A Modern Utopia, todos de Wells, mas sobretudo, o livro infantil As Crianças do Caminho-de-ferro, de Nesbit. E ainda só vou a meio do livro.

David Lodge tem aqui um toque de génio: consegue descrever toda esta época e ambiente sem cair no romantismo bacoco com que tantas vezes olhamos para o passado, visão essa que o distorce: uma ida a um jogo de futebol nos anos 50, se descrita com espectadores de fato, chapéu e bengala ganha uma dimensão romântica que nada tem a ver com os dias de hoje. Esses mesmos senhores eram tão normais quanto os senhores que vão hoje à bola de calças de ganga e t-shirt. O que pretendo dizer com isto é que a época que aparece descrita em Um Homem de Partes, vale por si mesma, pela força das suas ideias, das suas personagens e pela riqueza da história… numa palavra: pelo conteúdo. E é esse o grande mérito de Lodge: não é o embrulho que suporta o conteúdo mas o contrário. Não há uma glorificação das roupas da época ou dos meios de transporte da altura como forma de nos fazer centrar nos adereços: é a força brutal da vida desta personagem e a riqueza cultural do meio em que se move que prendem o leitor a esta história. O resto vem naturalmente, como deveria ser sempre, porque as marcas de cada época são naturais na própria época. Só ganham uma dimensão mais ou menos exacerbada pela distância temporal. Lodge não cai nessa, e esta história só tem a ganhar com isso.

Provavelmente não voltarei a escrever sobre este livro quando o terminar (só se ele se transformar em algo realmente mau o que é pouco provável). Esta obra demonstra que é possível escrever literatura de qualidade num estilo mais do que acessível.

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