“É estranha a vida. Não nos previne. Mistura tudo sem nos deixar escolher e os momentos de sangue seguem-se aos momentos de alegria, sem mais. Dir-se-ia que um homem é uma dessas pedras que se encontram pelos caminhos, que ficam dias inteiros no mesmo sítio, e que o pontapé de um vagabundo faz rolar e arremessa para o ar, sem razão. E o que pode fazer uma pedra?”
Qualificar uma obra
tem tantos impactos negativos como positivos. Mas analisá-la, ou escrever sobre
ela sem emitir juízos afigura-se-me quase sempre um desafio impossível. Por isso
não o cumpro e deixo descair as opiniões em crescendo, influenciando ou
iludindo, suscitando curiosidade ou dissuadindo quem algum dia ler o que
escrevo.
“Sabemos sempre o que
os outros representam para nós, mas nunca sabemos o que somos para eles.”
Brutal, Primoroso,
Profundo, Perturbador, Onírico… e poderia continuar com um sem número de
adjectivos para exprimir o que foi para mim a experiência de ler Almas
Cinzentas, um policial superiormente bem escrito e muitíssimo inquietante do
francês Philippe Claudel. E se não sei se este livro resistirá à erosão
temporal com que o tempo de encarrega de nos adulterar a memória, sei que neste
momento sinto que não “acertava em cheio” num livro há bastante tempo. Uma
confluência de feitio e oportunidade: feitio porque o livro e a escrita têm que
ver comigo, e oportunidade porque, mesmo que o livro me diga algo, posso nunca
o vir a descobrir se não o ler no momento certo. Neste caso tudo aconteceu como
devia acontecer.
“Costuma dizer-se que
tememos o desconhecido. Por mim julgo que o medo surge quando um dia passamos a
saber o que ainda na véspera ignorávamos.”
Com uma estrutura
narrativa perfeita, que faz da não linearidade uma harmonia magistral, Almas
Cinzentas conta a história, em retrospectiva de um assassinato ocorrido ne região
de Lorena, em França, em 1917, com a frente da Guerra bem perto.
Numa pequena cidade,
uma menina de dez anos é encontrada morta à beira de um rio.
É este o ponto de
partida para uma descrição sem igual e em paralelo, de um tempo e um espaço na
perfeição, e das ambiguidades e incoerências mais recônditas, mais escondidas e
mais ambíguas da alma humana… talvez por isso mesmo… mais humanas. Cinzentas são
as almas dos homens nesta história porque no ser humano nada é branco nem
preto. Nas almas como na vida.
“A morte brutal ceifa
as belas almas, mas conserva-as. É essa a sua verdadeira grandeza. Não podemos
lutar contra isso.”
A presença e o poder
dos poderosos tolhem aquilo que de bom pode existir na natureza dos homens. O
poder pelo poder, ou o despotismo (que por vezes deriva em fascismo) dos ricos
numa sociedade altamente hierarquizada fazem sobressair o que de pior existe na
natureza humana: a hipocrisia, o falso moralismo, o mundo de aparências, a
perpetuação do mal… tudo isto representado no (não) exercício da justiça.
O modo como os
poderosos saem sempre vitoriosos num mundo demasiado cinzento para contrariar a
ordem estabelecida não se limitou, infelizmente, à época retratada. E o poder
da mensagem deste livro também é este: ser um retrato revelador da injustiça do
mundo actual, onde são sempre os mais fracos a pagar pelas atrocidades
cometidas pela ganância e malvadez de quem manda.
“Mata-se muito ao
longo de um dia, sem nos darmos realmente conta, em pensamento e em palavras. Pensando
bem, os verdadeiros assassinatos são muito pouco numerosos em comparação com
todos estes crimes abstractos. Na verdade, o equilíbrio entre os nossos desejos
inconfessáveis e a realidade absoluta só se estabelece nas guerras.”
Mas, curiosamente, a
história não se fica por aqui: seria demasiado tendenciosa e unidimensional. As
idiossincrasias da mente humana não se limitam aos grandes. As tonalidades ambíguas
de uma cor que não é Bem nem Mal não é monopólio dos senhores do mundo. Todos
somos humanos e por isso, todos temos direito a falharmos enquanto tal. Sem
ideologia, apenas porque somos humanos.
“(…) no entanto, dizia
para comigo que tinha tempo: é essa a grande desgraça dos homens, dizemos
sempre que temos tempo, que podemos deixar para o dia seguinte, para três dias
mais tarde, para o próximo ano, para duas horas depois. E então tudo
desaparece. Damos connosco a acompanhar um caixão, o que não facilita a
conversa.”
Admira-me como um
livro tão bem escrito, tão profundo na análise que faz da natureza do ser
humano e tão perfeito no modo como consegue recriar as imagem e o ambiente de
uma época vá apenas na 2ª edição em Portugal (foi lançado em 2004).
Há anos que o livro me
tinha chamado a atenção por dois motivos: gostei da capa (a estética é algo a
que alguns não conseguem ser indiferentes) e notei que havia ganho o prémio “Renaudot”
em 2003 em França (não sabia, contudo, se este era um prémio com prestígio ou
se era uma versão francesa do prémio “Leya”). Numa oportunidade promocional,
comprei-o e posso dizer que o que dei por ele foram trocos (literal e
simbolicamente) quando comparado com o que recebi.
“Nunca a conhecerei
feia e velha, enrugada e gasta. Tenho vivido todos estes anos com uma mulher
que nunca envelheceu. Eu vergo-me, curvo-me, dobro-me, engelho-me, mas ela
continua sem falhas nem cicatrizes. A morte deixou-me pelo menos isso, que
ninguém me pode tirar, embora o tempo tenha apagado as suas feições, que me
obstino em redescobrir tal como eram realmente, embora por vezes, em jeito de
recompensa, me seja dado vislumbrá-las, nos reflexos do vinho que bebo.”
Porque as análises que
os outros fazem não são nunca as nossas, são as deles, também este livro não
passou a ser um reflexo do meu pensamento (ou eu não me tornei num
prolongamento do que nele foi exposto). Mas cada experiência que sentimos e à
qual nos entregamos com a abertura necessária para colhermos os frutos
influencia-nos, levanta-nos questões, inquieta-nos e dá-nos prazer.
Com este livro senti
tudo isso e, correndo o risco de defraudar expectativas, estou-me nas tintas: aconselho
vivamente já que é, sem dúvida, um dos melhores livros que a maioria nunca leu.
“Que um homem se
tomasse de amores ao aproximar-se da morte não tinha nada de novo. Era velho
como o mundo! Nesses casos, esquecem-se as conveniências. O ridículo só existe
para os outros, os que nunca compreendem nada.”
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