2455 – Cela da Morte (crónica sobre um livro poderoso)


2455 – Cela da Morte foi uma das minhas leituras deste Verão.
Para além do que já escrevi sobre este livro e da expectativa que tinha devido ao interesse que o tema me suscitava, confesso que o livro me surpreendeu pela simplicidade, clareza e organização do texto e da linguagem utilizados, por um lado, e devido à inteligência e profundidade da reflexão e dos argumentos empregues por Chessman, por outro.
Chessman era um criminoso: as duas primeiras partes do livro constituem um relato da sua vida até à condenação à morte: uma vida marcada pelo crime, com prisões e fugas sucessivas, reincidências com crimes cada vez mais graves. Foi então condenado à morte pelo crime de sequestro (roubo ou violação não eram crimes capitais na Califórnia, mas sequestro era), acusado de ser o “bandido da lanterna vermelha”, algo que ele sempre negou. Os “sequestros” com base nos quais inventaram a duas condenações à morte limitaram-se a ter afastado as vítimas a mais de x metros dos carros onde se encontravam!
Independentemente de Chessman ser ou não o dito bandido, nem sempre os fins justificam os meios: apenas com provas circunstanciais, inventaram um crime para justificar uma condenação sentenciada à partida. Pior: depois de efectivada a condenação, esta não podia ser posta em causa senão por erros “legais” e não de facto, ou seja, quem quer que fosse defender Chessman no recurso teria que trabalhar a defesa no pressuposto de que este era culpado: tal tornara-se, aos olhos da lei e da fanática opinião pública, um facto!

“(…). Toda a gente estava ansiosa por uma certeza; eu tinha, pura e simplesmente, de ser culpado. E porquê? Porque os nossos tribunais funcionam hoje de maneira tão perfeita que não se pode pensar que um inocente seja condenado. Eu era, portanto, culpado, e os meus protestos de inocência eram insolentes e imorais. Insolentes e imorais porque, devendo eu ser culpado (uma vez que tinha sido condenado), devia sentir-me assoberbado pelo remorso e passar o tempo clamando por misericórdia, entre gritos de: «Impuro! Impuro!»
A inocência deixa, assim, de ser uma vantagem, uma vez que é considerada impertinente. Como, obliquamente, observou o juiz Jesse W. Carter, do Supremo Tribunal da Califórnia, num parecer recente, «se a falta de penitência é demonstrada pelo apego aos protestos de inocência, então a inocência deixa de ser uma virtude e passa a ser um crime».
No momento de me condenar à morte, o juiz Charles W. Fricke fez-me a tradicional pergunta: «Existe alguma razão legal para que a sentença não seja pronunciada?»
Eu respondi-lhe imediatamente: «O réu está absolutamente inocente de todas essas acusações.»
Sua Excelência retorquiu: «Isso não é uma razão legal. É uma mera afirmação.»”

Num estado de direito, bem ou mal, a justiça existe para ser exercida. Onde esta termina e onde começa a vingança nem sempre constitui uma zona com limites bem definidos. Acredito que, na maioria das vezes, ambas coabitam (na sociedade e nas nossas mentes).
Mais: acredito que um juízo, qualquer que seja, deve ser emitido de cabeça fria e não no calor do momento, apesar do clássico argumento do “quem passou por elas é que sabe o que sofreu”.
A “dúvida razoável”, tão apregoada nos Estados Unidos, nos discursos políticos, nos filmes, livros, etc… na prática é muitíssimas vezes esquecida a troco de sentenças de morte ou de prisão perpétua apenas pela necessidade de encontrar um criminoso a qualquer custo, mesmo que seja um inocente (veja-se o caso dos West Memphis Three, de que já aqui escrevi). E não é um nem dez nem cem casos… são milhares. E quando se contrapõem com o argumento “Então mais valia não fazer nada e deixá-los à solta?”, então a estupidez atingiu o seu expoente máximo: como se só existisse preto e branco. Mas arriscando uma resposta: Sim! Se existir uma sombra de dúvida, sim, obviamente sim: o suspeito deve ser mantido em liberdade.
Outra coisa é existir prova e, por questões processuais um criminoso safar-se (para falar de um caso mais “leve”, as escutas do “apito dourado” cá em Portugal).

“Primeiro decidi que posso e quero, sem ostentação, oferecer-lhes a minha vida. Se o ódio da turba e o histerismo que rodeiam o problema só podem ser saciados com a minha morte e se, posta ela de parte, concordam em que a pena de morte deveria ser abolida, sinceramente imploro aos membros da nossa Legislatura que estruturem o projecto de lei de maneira a que eu não seja por ele abrangido.”

Bem sei que fazer prova de algo dá trabalho, mas isso é a vida. Podemos espancar alguém até o fazer confessar o que nós queremos (alguém já leu o 1984?): temos a confissão a qual, muitas vezes é utilizada em tribunal para efeitos de condenação. Tal só demonstra a pobreza dos meios, dos investigadores ou a dificuldade do caso. Mas faz parte da vida aceitar que os casos não vão todos ser resolvidos.
Se uma sociedade fica mais descansada em culpar alguém só para arranjar um bode expiatório em quem possa descarregar a sua raiva colectiva perante um crime horrendo, em vez de deixar um suspeito à solta por não haver provas da sua culpabilidade, então tal sociedade está muito mais próxima de um estado selvagem primitivo e irracional do que de um conjunto de seres humanos.

Uma última impressão em que Chessman insiste na sua argumentação: a de que as penas duras acontecem nas sociedades mais violentas e não são elas minimamente dissuasoras da criminalidade. É verdade: era verdade há 60 anos, quando Chessman escreveu o livro, como é verdade hoje. Mas muitos continuamos a não querer ver nem pensar sobre o assunto.
Atacar o problema na génese e prevenir o aparecimento de criminosos é uma medida com múltiplas frentes, da inclusão social, do ataque à pobreza, da educação, do acesso aos cuidados de saúde, do controlo de armas, do equilíbrio legal, etc… mas uma coisa é certa: sociedades perfeitas não existem e, mesmo com as melhores leis do mundo existirão sempre criminosos e, pior que isso, existirão sempre psicopatas, porque o comportamento humano não se pode legislar mas apenas prevenir: é irónico que tenha sido um criminoso (e possível psicopata), uma das vozes que melhor expôs esta questão e de uma forma tão clara.

“Sem o saber, o cidadão que constantemente clama por mais e mais severas leis, por cadeias mais numerosas e mais rigorosas, por castigos mais terríveis, está a arranjar recrutas para o crime, porque a sua voz é sempre ouvida, e a sua pesada mão sempre sentida, pelo jovem rebelde, que, invariavelmente, reage com crescente hostilidade contra essa voz e essa mão.
É claro que tem de haver leis e que as leis têm de ser cumpridas. Mas a sociedade tem de compreender que o delinquente que venera a dureza, e que erradamente assimila essa desrespeito da lei, nunca será levado a viver dentro dela, em paz com os seus semelhantes, só por medo das consequências, por mais terríveis que estas sejam. A sociedade precisa de compreender também que é muito mais barato, mais humano e mais eficiente salvar o criminoso potencial enquanto jovem do que destruir o seu espírito ou endurecê-lo de tal maneira que ele se transforme em assassino ou delinquente profissional.”

Chessman, por não ter dinheiro para pagar a um bom advogado, resolveu ele próprio tratar da sua defesa: começou a estudar a legislação e, recurso após recurso, aguentou-se 12 anos no Corredor da Morte, tendo escrito três livros. 2455 – Cela da Morte foi um estrondoso sucesso em todo o mundo, causando enorme embaraço ao poder político e judicial americanos: da paranóia anti-comunista (estávamos em plena época da caça às bruxas – quem eram os maiores lunáticos: os que estavam presos ou os “Hoovers” e os “McCarthys” que controlavam a segurança e a justiça?) ao puro fascismo com que a “justiça” (ó vingança) é exercida nos tribunais, tudo serviu de argumento para condenar à câmara de gás um homem que, se outros argumentos não houvesse e se a sua culpabilidade tivesse ficado demonstrada, uma pena de 12 anos ao longo dos quais teve por 8 vezes sentença marcada é castigo suficiente… pior que castigo, é tortura!
Não tenho duvidas de uma coisa: Caryl Chessman é um herói, e é-o pela prova que deu de que alguma regeneração é possível: acredito pouco em mudanças radicais, mas acontecimentos radicais levam mesmo a mudanças profundas nos seres humanos. E que acontecimento mais radical existirá do que ter por 8 vezes um encontro marcado com a morte? Só a própria morte.
A pena de morte ainda hoje existe: não foi abolida nos EUA e este continua, 60 anos depois, a ser um dos países desenvolvidos com taxas de criminalidade e criminalidade violenta maiores do mundo. 

“(…). Aceitemos, nem que seja só como hipótese de trabalho, a ideia de que a única coisa que a execução do homem da cela 2455 provará será que ele está morto. E então perguntamos: «E o que é que a morte dele prova?»
O problema dos criminosos e do crime, evidentemente, não morrerá com ele. A verdade, nua e crua, é que a sociedade pode executá-lo, a ele e aos outros criminosos, até o sangue lhes chegar ao pescoço – mas continuará a haver crimes. Continuará a haver «criminosos».
A vingança social – disfarçada de justiça – é, assim, uma coisa monumentalmente fútil, e a sociedade atrapalha-se desnecessariamente ao pô-la em prática.
Quem isto escreve sabe-o bem.
Esta é a sua história, contada por palavras suas, escrita enquanto espera que o matem.”

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