O problema da escrita
intensiva é a capacidade de reinvenção. Como nas obras de arte, difícil para
quem produz algo, seja um filme, uma música ou um simples texto, é conseguir
descolar do produto anterior… ou pelo menos da tendência anterior. Foi (também)
por isso que deixei de aqui escrever: senti-a que quase todas as minas opiniões
pouco traziam de novo, sendo demasiadamente iguais. Claro que, sendo sempre a
mesma pessoa a escrevê-las, há uma marca que tem que ser comum a todas elas:
nós não mudamos enquanto pessoas com uma frequência tal que permita produzir
matéria disruptiva cada vez que empreendemos tal tarefa. Mas quando texto após
texto sentimos que tudo é demasiado igual, e que a reinvenção requer um esforço
que é quase um objectivo em si mesmo, mais vale parar.
Apenas uma obra
realmente genial me faria voltar a opinar, e aconteceu vê-la este
fim-de-semana. A Vida de Adèle (La Vie d’Adèle, 2013) venceu a Palma de Ouro em
Cannes este ano. Quando o soube, e ao ver do que tratava: uma relação amorosa
entre duas raparigas, pensei que seria mais do mesmo. Mais ainda: o único filme
que eu havia visto de Abdelattif Kechiche, A Esquiva (L’Esquive, 2003) não me
havia enchido as medidas. Ainda assim, fiquei com curiosidade em ver o filme.
Mais cresceu essa
curiosidade quando uma amiga, que viu o filme na ante-estreia, no Lisbon &
Estoril Film Festival, me disse que tinha cenas “muito explícitas” (quase
pornográficas). E sabia que o filme demorava três horas!
Demasiada informação
para quem pouco ou nada gosta de saber sobre os filmes que vai ver.
A Vida de Adèle é o
melhor filme de 2013 que vi.
É genial em todos os
aspectos, e faz jus ao seu antecessor em Cannes, Amor (Amour, 2012), mostrando
uma forma completamente diferente de tratar um mesmo tema, o Amor.
Este é um filme tão
realista quanto natural, e o que nos surpreende (quando não deveria acontecer)
é o facto de, quando o cinema é demasiado realista, por vezes nos chocar ou
decepcionar, quando é simplesmente natural.
Este é o primeiro
filme que vi que mostra uma relação homossexual contada como se de uma relação
heterossexual se tratasse. Nada há do cliché já insuportável do “nós, os gays,
contra o mundo” ou da palmadinha nas costas do liberal perfeito que aceita
todos como seus iguais.
Nada disso: neste
filme a ideologia é inexistente, e por isso, é a natureza da relação que
sobressai. O início, o meio e o fim.
Esteticamente é um
filme quase perfeito, uma história que, de tão bem contada, não se dá pela
passagem das três horas (a marcação do tempo nas diferentes fases da relação é perfeita).
A realização e as interpretações são geniais.
Este é também um filme
que me fez questionar os limites da interpretação: tudo ali acontece e se, como
espectador, tal me satisfaz, como ser humano questiono-me se o que se passa na tela e na realidade é assim tão diferente? (alguém ainda acredita no “beijo técnico”?)
Uma última nota para
referir a penúltima cena: o reencontro entre as duas protagonistas é
simplesmente brutal. Numa comparação livre, lembrou-me a cena final de Os Chapéus-de-chuva
de Cherburgo (Les Parapuies de Cherbourg, 1964), embora para comparar ambos os
filmes seja necessário uma liberdade de análise bem grande, tal a diferença
entre as duas obras. Contudo, o impacto desta cena, no que fica de uma relação,
até que ponto está efectivamente resolvida e, tão ou mais importante, o que de
diferente podemos/conseguimos valorizar em diferentes relações… tudo isso está
muito bem retratado nesta cena muitíssimo poderosa.
Comentários