Desapareceu
de circulação quando eu deixei de me mover pelas bandas de São João do Estoril,
transferindo cada vez mais a minha vida para Lisboa, primeiro o trabalho,
depois o lazer. O lar, esse permanece fiel ao concelho que me viu crescer.
Desde sempre
que me lembro dele, solitário, sujo, sóbrio, simpático, sibilando para si
próprio uma conversa que só ele entendia. Os sacos de plástico que
continuamente lhe pendiam dos braços caídos, prolongamentos contendo as esmolas
com que os transeuntes o presenteavam regozijando-se assim pela distintíssima
caridade com que aplacavam a responsabilidade que gritavam interiormente não
ser a sua, continham os bens essenciais para o manter ligado à máquina da vida
se (e apenas neste caso) não era ele quem os abastecia.
Confesso que
também eu pertenci ao “exército da salvação” do Runa (era assim que ele era
conhecido em São João e arredores), congratulando-me sempre excessivamente pela
minha boa acção quando o fazia mais por mim do que por ele.
Sempre que a
dádiva era em dinheiro, o Runa não perdoava e permitia-se viver a vida dentro
do ilusório desvanecer de liberdade que uma moeda lhe conferia: comprava uma
lata de cerveja e com ela, dizia-nos a todos (que quando nos apanhávamos bem
dispostos lhe dispensávamos um pacote de leite ou uma lata de atum) que o
direito a uma vida digna não se compõe apenas de pão e água mas de lazer,
prazer e alegria… e alguns vícios também… se nós temos esse direito, porque não
ele?
Deixei de o
ver quando minha vida se transladou para a capital, onde os cinemas, as
esplanadas e os concertos me retêm mais do que seria desejável para que eu
pudesse viver a vida tranquila que nem sempre desejei.
Estranho o
local onde habito, agora que o vejo sempre sob a lente do pára-brisas… deixei de
me deslocar a pé por Alapraia, São João, São Pedro, e nessa ausência, os
detalhes desse tempo (dez, quinze anos talvez?) vão-se apagando, tal como o
Runa.
Não sei se
ele continua por aí, se emigrou ou se faleceu, mas foi um personagem que acompanhou
a minha adolescência e a entrada na idade adulta. Acompanhou a adolescência de
todos nós com a sua simpatia, respondendo sempre com um “bom-dia” à nossa
solicitação, olhando-nos sempre nos olhos com uma expressão de meiga
inteligência, um ténue sorriso no olhar e uma conexão de igual para igual que
nos desarmava mas que tão bem nos sabia.
Trajava
quase sempre de preto, vestindo no Inverno um sobretudo que se tornou num “clássico”
do Runa, prolongando o emaranhado pastoso que cimentava a negridão da sua barba
e cabelo, antecipando a tendência “lumber”
que agora impera. As roupas andrajosas estavam gastas, sujas e cheiravam mal.
Talvez o preto formasse parte do seu luto pela vida que em tempos tivera e a
qual lhe morrera. Talvez as palavras com que ia alimentando as discussões que
ia mantendo consigo mesmo à medida que caminhava pelas ruas de São João,
acompanhadas pelo gesticular ora suave ora enérgico, mais não fossem do que memórias
verbalizadas da vida que partira, para que nessa verbalização ficassem gravados
no ar que todos respirávamos, alguns fragmentos do passado (que não pedia muito
para que tivesse sido melhor do que o presente), na esperança de que algum
ouvido passageiro pudesse gravar, e mais tarde ressuscitar, o tempo em que o
Runa não dava pelo nome.
Mas ninguém
ouvia o que ele dizia para lá do “bom-dia”.
Falava-se
que a sua família era rica (não é o que se diz de tantas famílias dos
sem-abrigo?), de que tinha um palacete perto da marginal que dava para a praia
da Azarujinha, onde ele havia vivido nessa outra vida.
O jogo,
dizia-se, esse vício tenebroso e tão despromovido quando comparado com os
outros vícios mais “da moda”, havia sido a sua perdição. A ruína de um Runa que
recolhia da rua os restos dos ricos.
Creio que
nunca saberei a sua verdadeira história, nem poderei confirmar se estes ditos
albergam algum fundo de verdade. Afinal, eu era apenas mais um que lhe lançava
um “bom-dia” e umas moedas comprando assim o meu cantinho no céu, afastando-me
de seguida do cheiro que a sua dignidade não me deixava sentir.
Lembro-me,
numa temporada em que trabalhei como caixa num supermercado em Alapraia, de o
ver aparecer amiúde para comprar uma cerveja, sempre cerveja, deixando cair das
mãos morenas, camufladas de gretas e sujidade, moedas ao acaso pelo tapete
rolante, confiando-nos a missão de não o enganar com o troco, nobreza de
atitude que muito poucos clientes manifestavam, protestando sempre pelo cêntimo
em falta quando não havia moedas na caixa, mas nunca devolvendo o cêntimo a
mais com o qual tantas vezes eram regalados.
Os pobres
possuíam o digno desprendimento com que o Runa displicentemente nos atirava o
dinheiro: a sua cerveja pedia a nossa honestidade… uma e outra eram
indissociáveis. E nem o facto de ele passar à frente das filas que se formavam junto
às caixas, lançando o seu cheiro para afastar os mais afectados, era condenado
por estes, que se convenciam que lhe davam passagem por simpatia: afinal o
homem levava apenas uma cerveja!
Ao fim do
dia de trabalho, encontrava-o sentado ou deitado junto ao respiradouro do
armazém do estabelecimento, aproveitando o calor que emanava da grelha para o
exterior. E que bem que lhe devia saber o ar quente pelas costas numa noite de
Inverno, parco luxo para um senhor que tão pouco exigia da vida.
Todos cairemos
no esquecimento um dia mas os amigos, os relacionamentos, os filhos, e um sem
numero de distracções com que ocupamos a vida (a começar pelo trabalho)
cegam-nos desta visão tão nítida, alimentando-nos nós deste engano no qual
gostamos de viver, para que acreditemos nunca vir a cair no esquecimento ao
qual todos votámos o Runa, mas do qual ele nunca nos cobrou. Mas a vida não
deixa de ser como é e nós não deixaremos de o seguir, permitindo que ele nos
ensine a viver com simplicidade, onde quer que seja esse lugar acolhedor no
qual todos caberemos.
Caparide,
9 de Maio de 2017
(boletim "Ecos da Costa" #32, Out-2017)
(boletim "Ecos da Costa" #32, Out-2017)
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