A
recomendação de um livro corre sempre o risco de nos apanhar no momento errado
para que possamos usufruir da experiência da sua leitura na plenitude, como
acontece quando escolhemos livremente a altura para ler determinada obra, sem opiniões
nem referências que influenciem a nossa análise.
Houve contudo um livro que li há
meses chamado Somos o Esquecimento que
Seremos, com o qual nada disto se passou: tinha opiniões favoráveis de duas
amigas, uma portuguesa e outra espanhola, cujas posições, embora as tenha em
elevada conta, nem sempre são representativas dos meus gostos; e não escolhi o
momento em que ele chegou até mim pois aproveitei uma oportunidade no OLX
adquirindo-o por cinco euros (custava dez euros em novo, estando já a desconto
pela fraca adesão - ou distribuição – que teve em Portugal).
O género era algo indefinido, uma
mescla entre autobiografia, documento histórico e relato policial e conta a
história de Héctor Abad Gómez, médico colombiano dedicado à causa da saúde
pública, activista de esquerda nas mais diversas áreas dos direitos humanos,
marido, pai de cinco raparigas e de um rapaz (o autor), assassinado a
sangue-frio à saída do trabalho quando fazia da reforma o período mais activo
da sua militância, e um homem que, a avaliar pelas manifestações de carinho
demonstradas no seu funeral por alunos seus na faculdade de medicina, conhecidos,
familiares, amigos e simples desconhecidos que simpatizavam com as causas que
defendia ou haviam somente ficado horrorizados perante a brutalidade da
injustiça que a sua morte prefigurava, deixou a sua marca na turbulenta
história da Colômbia da segunda metade do séc. XX.
Gostei do livro mas adorei o seu
autor.
Héctor Abad Faciolince demonstrou uma coragem
hercúlea para se lançar num projecto cujo sofrimento está patente ao longo de
toda a obra. A sua relação com o pai era especial, mesmo entre as suas irmãs, e
ele não se coíbe de o assumir nas linhas em que descreve a sua infância,
adolescência e até a idade adulta. O carinho que pai e filho nutriam um pelo
outro é descrito de forma tal que só a própria vivência pôde transpor para o
papel tamanha ternura.
Foram necessários vinte anos para que reunisse a coragem
e se sentisse preparado para mexer numa ferida que marcou a sua família para
sempre. O sentimentalismo é tão autêntico, tão bem descrito que é impossível
demonstrarmos indiferença quando somos convidados a testemunhar a história
daquelas pessoas.
Nós, os latinos, gostamos de
acreditar que possuímos um apego à família e aos amigos com a qual eu me
identifico. Esta forma de viver, de sentir, de exteriorizar, de ser, é exemplificada
pelas reacções demonstradas por toda a família, cujas descrições do modo como
reagiram à morte daquele homem tão central nas suas vidas se encontra tão bem
documentada nas páginas daquele livro.
Também a revolta atravessa todo o
relato dos acontecimentos pois os assassinos nunca foram descobertos. E
conseguir passar por cima desse facto (sem nunca o esquecer) de modo a concluir
uma história tão dramática é um feito que só merece aplauso.
Vi há dias um documentário chamado Carta a Uma Sombra, que mais não era do
que a tentativa de transpor para televisão a história que o livro descrevia.
Curiosamente, o filme veio apenas reforçar a ideia com que ficara aquando da
leitura: ver aqueles personagens de uma história real a falarem, as expressões,
a voz, as lágrimas, as memórias… enriquece tanto a leitura do livro como o
livro engrandece a experiência que foi para mim a visualização do filme.
Quando terminei o livro, tentei (sem
sucesso) contactar o autor para lhe manifestar algumas das ideias que se
encontram expressas neste texto. Não encontrei qualquer contacto em lado algum,
nem mesmo na sua página oficial. Provavelmente o que eu teria para lhe dizer
não mudaria nada; provavelmente já dezenas ou centenas de leitores e amigos lho
disseram; provavelmente fá-lo-ia mais por mim e pela minha necessidade de
chegar ao outro do que por uma genuína gratidão pela abertura demonstrada na
obra por alguém que não conheço.
Ainda assim, estou grato por saber
que há gente capaz de descrever tão bem os sentimentos, gente de carne e osso
que sofre como nós e não tem medo de o demonstrar, gente latina… estou grato
pela experiência que esta triste história me proporcionou. Porque é na tristeza
que às vezes encontramos as maiores afinidades. E é tão fácil descobrir-nos
neste relato.
“Foram anos felizes, só que a
felicidade está feita de uma substância etérea que facilmente se dissolve na
recordação e que, quando regressa à memória, vem acompanhada de pieguices que a
contaminam e que sempre rejeitei por serem inúteis, melosas e, em última
análise, perniciosas para a vida presente. De qualquer maneira, também há que
dizer que as tragédias posteriores não devem embaciar as recordações felizes,
ou tingi-las de desgraça, como, por vezes, sucede a alguns temperamentos
doentes de ressentimento em relação ao mundo que, por causa de episódios
posteriores injustos ou muito tristes, apagam o passado, mesmo os indubitáveis
períodos de alegria e plenitude. Entendo que os factos futuros não devem
contaminar com amargura os anos felizes.”
Biblioteca de São
Domingos de Rana, 6 de Janeiro de 2018
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