O texto que se segue partiu de um desafio de uma amiga, que me
propôs que escrevesse um texto que contivesse quatro palavras previamente escolhidas
por ela, as palavras eram: Gato; Livro; Caveira e Arroz
e após algumas semanas a “marinar”
no meu subconsciente, lá encontrei tempo e vontade para avançar com um
exercício que se encontra muito próximo da escrita criativa:
Partíamos
juntos todos os dias pela manhã, no comercial de dois lugares que me havia
calhado no trabalho: delegado comercial, eu que nem para vender água no deserto
tinha jeito.
Era uma
rotina de que gostávamos no inicio, mas à qual nos fomos acomodando,
desvalorizando cada passo que dávamos em conjunto, como nos demais aspectos da
nossa relação. Até a alimentação do gato, a quem nunca atribuímos um
nome por não termos chegado a acordo sobre aquele que melhor lhe servia, era
preparada à vez, ora por mim, ora por ela, antes de sairmos de casa. E como não
queríamos gatos maricas, ambos concordámos que não haveria cá mousses
nem gourmets… o gato comeria do que nós comêssemos: não era essa uma
demonstração de o considerarmos como um igual? Carne, peixe ou ovos, tudo era
degustado pelo pequeno felino. Até um pouco do arroz servido à nossa
mesa era transposto para a sua tigela: e ele chamava-lhe um figo. É o que dá
não lhe darmos opções.
O gato
adoeceu e com ele, também a nossa relação.
Sem filhos,
o nosso relacionamento foi-se centrando em torno daquele pequeno pedaço de
ternura, e o carinho que tínhamos destinado um para o outro, encarregou-se a
rotina de o desviar para o pobre animal em sofrimento. Mal falávamos sobre
outra coisa que não a doença do pequeno e a partida diária para o trabalho
foi-se transformando, lentamente, num cemitério de palavras, imperando o
silêncio preenchido por um ruidoso turbilhão de dúvidas e pensamentos.
A morte do
gato abriu a porta ao fim da nossa vida em conjunto. Aquilo que nos unira no
início dissipara-se lentamente, sem que o quiséssemos aceitar e, no momento em
que assumimos que cada um deveria seguir o seu caminho, ao evocar a doce
expressão no rosto da paixão que um dia nos unira, não conseguia ver mais do
que o amargo sorriso de uma caveira, escarnecendo daquilo que um dia a
sua própria expressão representou para nós dois.
Levei tempo
para converter essa expressão dolorosa em algo que, simplesmente, faz parte da
vida, do processo de aprender a viver. Por um período que não sei quanto durou,
de cada vez que uma mulher se aproximava, quaisquer que fossem as suas
intenções, era aquela expressão de escárnio que eu via a rir de mim, vinda da
relação que um dia tivera e que, mesmo tendo terminado antes da “data oficial”,
me custava ainda a aceitar. Como se a impossível imortalidade do gato
prolongasse pelo infinito uma união que caíra nos escolhos da rotina.
Só tempos
depois, como que por milagre, assim o vi eu na altura, voltei a interessar-me
por alguém. Foi necessário aprender a estar bem comigo para permitir a entrada de
outra mulher entrar na minha vida.
Mudei de
vida ao mudar-me para o campo e, na busca da simplicidade das pequenas coisas,
reencontrei o amor. O delegado comercial transformou-se no pequeno proprietário
de um estabelecimento de turismo rural e o gato que outrora preencheu grande
parte da minha vida deu lugar a um pequeno jardim zoológico que fomos
construindo no monte com um cão, um gato, galinhas, perus, e até um pónei, a
atracção da pequenada.
A minha
namorada entrou pela porta dos fundos, plantando em mim o amor sem que eu desse
por ele. Foi a primeira vez que algo nasceu em mim sem que eu o houvesse
idealizado antes e creio, apesar do perigo de todas as teorias que formulamos
sobre o amor, que essa construção tornou mais forte a relação. Sem idealismos
nem projecções, construímos o edifício que nos alberga de baixo para cima, e
isso marcou a grande diferença quando evoco o livro da memória para
aquela outra paixão, que se me afigura agora tão remota. Folheio esse livro e
constato que a amargura que senti durante tanto tempo deu lugar à ternura
quando folheio os bons momentos e à indiferença quando passo as páginas dos
maus, os quais a tinta da memória se encarregou de dissipar transformando-os em
páginas em branco. É que o livro das lembranças é limitado e é necessário
limpar alguns capítulos para que outros mais felizes nele possam ser inscritos.
Recordo o gato
que comia o arroz e a minha primeira namorada com carinho, e como um
passo importante da minha vida. Não vejo mais a caveira a prender-me na
sua expressão aterradora mas sim um rosto sorridente a sorrir para mim do livro
do passado, espelhando o sorriso que forma a vida que agora abraço.
Coruche,
28 de Junho de 2017
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