Encontrei-o numa manhã de
domingo quando fui tomar o pequeno-almoço a uma pastelaria indicada por uma
amiga da qual nunca tinha ouvido falar (da pastelaria e não da amiga,
obviamente). O interior do concelho de Cascais esconde um sem número de
surpresas no que toca a restauração e cafetaria que o snobismo e comodismo de gente como eu, que apenas se move na faixa
delimitada pelo mar, a sul, e pela A5, a norte, vai mantendo desconhecidas.
A pastelaria (em cujo nome
figura a palavra “Padaria”), situa-se na Conceição da Abóboda, nome que de
imediato me trouxe recordações da adolescência quando, aos domingos de manhã,
eu marcava presença na garagem junto às piscinas de Alapraia, então sede do
Clube Desportivo da Costa do Estoril, para participar nas provas de atletismo
pelo clube no qual eu era atleta.
Durante quatro anos, entre
treze e os dezassete, participei em dezenas de corridas preenchendo os dois
anos de iniciado e outros dois de juvenil nos troféus de estrada dos concelhos
de Cascais, Oeiras e Lisboa.
Um dos meus companheiros
de desporto era conhecido por “Pisco”, porque era pequeno como os piscos
segundo dizia o irmão, o Zé, também ele atleta do clube. O Pisco era um ano
mais novo do que eu e o Zé uns três anos mais velho. O apelido de ambos era
“Dias” tal como o meu, e o verdadeiro nome do “pequeno pássaro” era João (os
piscos são pássaros pequenos e, uma vez que o Pisco e os irmãos costumavam
caçar pássaros, por alguma associação que só a eles dizia respeito, a sua
alcunha ficou associada à pequena ave, alcunha essa que ainda hoje sobrevive).
Entretanto deixei o
atletismo e só muito espaçadamente ia vendo ou sabendo do Pisco. Ainda
trabalhou num supermercado em Alapraia, tal como o Zé (e tal como eu uns anos
antes dele), onde o via quando lá ia. Soube que foi pai.
Quando me dirigia para a
Conceição da Abóboda, ia recordando as manhãs de então e os atletas que comigo
formavam aquela equipa: O Zé, o Pisco, o Paulo e a Eugénia (os quatro eram
irmãos), O Idnei, o Chico e a Andreia (três irmãos), A Filipa, a Marina e o
Nelson (três irmãos), O Joquinha, a Susana, o Fernando, o Zé e o André (três
irmãos), o Leroy, o Zé Azevedo, o Zé (muitos “Zés” pertenciam à nossa equipa…)
e a Carla Pina (dois irmãos), o Pina (o Johnny),
mais novo e sem qualquer relação com os anteriores além do nome, o Domingos, a
quem tínhamos sempre que acordar aos domingos de manhã quando passávamos por
casa dele na carrinha do clube para seguirmos para as provas, fazendo jus ao nome de dia de descanso. E claro,
lembro-me bem do Zé Nunes e do seu farto bigode, maquinista da CP e nosso
treinador nas horas vagas. Recordo a sua boa disposição e a dedicação que nos
dispensava nos treinos às 2ªs, 4ªs, 6ªs e aos domingos nas provas.
Este pequeno périplo pelo
interior do concelho pediu a utilização do GPS reforçando o meu desconhecimento
e afastamento da parcela mais rural da zona onde vivo. Após me ter perdido
(obviamente), passei pelo largo da igreja onde decorria a prova de atletismo da
Conceição da Abóboda mas qualquer semelhança entre este local e aquele onde
corri, mais de vinte anos antes, é pura coincidência. Lá redirecionei o
trajecto e dei finalmente com a anunciada pastelaria. Estacionei o carro e,
quando já estava em frente do estabelecimento vejo sair um rapaz de cabeça
pequena, queixo proeminente, um saco de pão na mão, que reconheci de imediato
como sendo o Pisco. Vestia a indumentária desportiva da moda dos domingos de
manhã: roupa preta e laranja florescente, justa, com estilo. Dirigiu-se para um
jeep BMW branco que havia ficado parado do lado contrário da rua e, enquanto
andava, olhava para mim por reparar que também eu olhava para ele. Abriu a
porta do carro e deixou o saco do pão sempre a olhar para mim, e eu fiz menção
de atravessar a estrada e dirigir-me a ele.
Foi uma feliz coincidência
eu tê-lo encontrado momentos depois de reviver a época em que convivíamos nas
corridas, e logo num local onde havíamos corrido juntos!
Cheguei até junto dele e
apertámos as mãos como velhos conhecidos que não fazem caso das décadas de
afastamento que os separam. A conversa, embora não tenha sido exactamente como
relatada a seguir, não fugiu muito ao cliché
habitual:
- Olá! Estás porreiro? – disse eu.
- Sim, tudo bem, e contigo? – respondeu o Pisco.
- Tudo a andar também. Vim até aqui experimentar a padaria e tomar o
pequeno-almoço. Mas nunca mais vim para estes lados.
- Eu moro aqui perto agora. – disse ele num jeito afável.
- Então e de resto, o que é que tens feito? – pergunto.
- Trabalho, casa, família… tudo a andar. E tu?
- Trabalho em Lisboa e moro em Caparide. Mas continuo a andar por São João
e Alapraia.
- Ah, boa. – continua ele – E já agora, como é que te chamas mesmo? - ele
não me havia reconhecido, mas não havia dado parte fraca e mantivera a conversa
alimentada pela educação que demonstrava!
- António. – disse-lhe.
- Marco. – responde ele!
Marco!? Pensei sem o dizer… então este tipo não é (nem nunca na
vida tinha sido) o Pisco?! Afinal o que eu assumi como uma feliz coincidência…
revisitar o local das corridas da adolescência… relembrar esses tempos e esses
atletas tão dedicados … e encontrar um deles à entrada do lugar para o qual me
dirigia, não passou de uma auto-sugestão do meio e da
memória...
Era a minha vez de não dar parte fraca e atalhei com o
clássico “Bem, gostei de te ver, pá!”
provavelmente sem que o Marco alguma vez ficasse a saber de onde me conhecia.
Ou então, também ele percebeu que eu não era quem ele pensava que eu era e
ambos, sabendo que nos havíamos encontrado com a pessoa errada, afastámo-nos
satisfeitos pela simpatia mútua com que nos presenteámos, de estranho para
estranho.
Lisboa, 27 de Outubro de 2017
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