A carta que ela nos deixou
no dia em que foi embora, sem aviso, durante a madrugada enquanto dormíamos,
partiu-me o coração. A expressão está gasta, mas o meu coração ficou mesmo
partido quando li as suas palavras. Conheci-a então muito melhor ao ler o que
diziam sobre a pessoa que ela era do que durante os dois dias em que havíamos convivido,
dia e noite, naquele espaço pensado para todo o género de actividades menos
para dormir.
Ali fomos parar, seis
voluntariosos jovens dos quais mal recordo os nomes… formávamos o grupo inicial
ao qual se juntou mais tarde a Ana, sem que da sua vinda tivéssemos sido informados.
Ali estávamos para servir e para desfrutar, conhecer, divertir…
Lembro-me de que fui o
primeiro a chegar, numa manhã de Julho de 2003 da qual pouco consigo precisar:
importante foi o que ficou, mais do que os detalhes documentais que tornariam
este relato num enfadonho diário de bordo. Dormi sozinho na noite inaugural,
numa sala localizada no extremo oposto àquela onde pernoitaram os primeiros
elementos a quem nos cabia apoiar: falavam francês o que, tendo em conta a troupe de língua alemã que chegaria ao
longo dos dois dias seguintes, não era mau de todo.
Fiquei então a saber, por
entre as sobras do francês que ainda retinha dos tempos de escola, que a
ginástica não competitiva era como que um desporto nacional na Suíça,
provavelmente como o atletismo ou o futebol o são em Portugal. E a gymnaestrada era apenas “o” evento
mundial de ginástica fora de competição. A simpatia não fez parte do cartão de
visita que me entregaram no primeiro contacto e só a chegada do Pedro e da
Bárbara no segundo dia me tiraram da cabeça a ideia de arrumar o saco-cama e a
roupa e regressar ao conforto do lar em tempo de férias.
Nesse ano, os exames nem haviam corrido mal e o verão
acabou por ser premiado com as melhores classificações a que eu podia aspirar:
uns dias em Monsaraz, onde vi o céu mais bonito que alguma vez pude testemunhar
até hoje; uma semana em Barcelona, onde entrei pela primeira (e antepenúltima)
vez num bar de alterne (el mítico Bailen 22) e os dez dias da gymnaestrada onde, enquanto voluntário,
fui incumbido a dúbia tarefa de dormir com os participantes de parte da
delegação suíça. Não se tratava tanto de dormir “com” eles mas de dormir
“próximo” deles para garantir que estariam acompanhados, tomariam o
pequeno-almoço e se poriam a andar da escola que nos servia de abrigo antes das
oito e meia da manhã nos dias em que os alunos tinham exames nacionais.
À medida que os diferentes
grupos foram aterrando na Herculano de
Carvalho (escola entretanto renomeada como António Damásio), o nosso trabalho foi crescendo em exigência, tal
como comunicação que nos víamos obrigados a estabelecer. A Débora era a única
que dava uns toque de alemão (eu não ia muito além de scheisse e kartoffel) pelo
que nos fazíamos entender em inglês. Com o grupo do lado francês só podíamos
falar… francês.
Penso ter sido já com a
escola cheia que chegaram os últimos reforços, o Sandro e o Jorge, completando
assim uma equipa que longe de ser brilhante, cumpriu o que lhe foi pedido.
Passeámos com os suíços
por Lisboa, fomos eles até Cascais, e conversámos e convivemos o bastante nas
muitas horas que passámos juntos na escola que nos albergou durante o evento.
No final, eles ofereceram-nos blhetes para a Gala FIG e eu dei (ao grupo francês) o meu cachecol de Portugal.
Sem que o soubéssemos, o
grupo não estava ainda completo: a Ana chegou já o evento ia a meio,
apanhando-nos entrosados, como grupo e com os
participantes. Pensei, sem que fosse o único a fazê-lo, para que é que mandaram para aqui esta miúda, que já pouco vem
acrescentar?
Calada, educada, humilde, entregávamos-lhe
algumas tarefas menores com a displicência de quem tolera a presença de alguém
a quem pouca ou nenhuma importância atribuíamos. E a Ana cumpria e participava
nas nossas brincadeiras, sóbria, fazendo mais por se integrar no grupo do que o
grupo fazia por ela. E dois dias após a sua chegada, desaparece sem que nenhum
de nós tivesse detectado qualquer sinal de que tal pudesse ocorrer da forma que
ocorreu.
Quando acordei nesse dia,
alguém (creio te sido o Gonçalo, que fazia segurança na escola durante o evento)
trazia a carta de despedida que a Ana deixara. As pessoas ficaram com pena mas
encaixaram a situação com a normalidade que ela merecia. As lágrimas que não
consegui conter surpreenderam-me, a mim que até àquele instante não havia dado
conta de quão injusto tinha sido para ela, não por algo que lhe tivesse ou não
feito, mas pelo que havia pensado sem que ela me tivesse dado razões para tal.
Vejo hoje que a minha reacção foi exagerada, mas ela
também foi adensada pelo teor da carta: foi isso que me derrubou num só golpe…
(…)
“Gostava de
ficar mas trata-se de ir de férias com o meu pai que só vejo 2 vezes por ano e
vou ver a minha avó que tb só vejo 2 vezes por ano.
(…) Não fiz
grandes amizades (…) à excepção de 1suíça mto simpática.
(…) Vou-me
embora, (…) contente (…) mas triste (…) pq se calhar vocês estão a achar que
sou 1 pita (…) que não vale nada…
Se calhar até
têm razão!! Mas adorei tar aki, apesar de nem sempre parecer…
(…)
Kurti
conhecer-vos!!
Obrigado por
tudo!!
Pedi se podia ficar com a
carta perante a incredulidade de alguns.
Procurei-a esta noite
durante mais de meia hora até que por fim, lá apareceu o papel quadriculado com
letra de adolescente dentro de uma pasta que continha documentos de um outro
vento de voluntariado em que eu havia participado no ano anterior.
E se hoje já não me toca
como o fez no passado, não deixo de sentir um aperto de cada vez que leio as
suas palavras e as associo à distância que nos dividiu quando os seis
partilhámos uma sala de aula como quarto no Verão de 2003.
Eu tinha vinte e dois anos
e ela dezasseis.
Ela era apenas uma pita. E isto é apenas uma história.
Lisboa e Caparide, 20 de Fevereiro de 2018
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