O Processo Criativo

Quem escreve
Reparte perguntando a quem serve
Se a ideia da palavra é forte e leve
Sem nada resolver
Nem sim nem não
Quem escreve
Resume amplificando o dia a dia
Procura mais poesia na poesia
Desmonta construindo
A solidão
Quem escreve
Repara sem reparo apenas vê
Agita o pensamento de quem lê
Dá mais caminho ao sonho que
Fugisse

Quem escreve
Aponta o argumento a entrelinha
A virtude da escrita é ser sozinha
Escrevendo a folha em branco
Que não disse

Quem escreve
Destrava o catavento que lhe indica
O rumo da leitura que não explica
Escrever é a pergunta em movimento
Quem escreve
Liberta ainda mais a liberdade
De amarrar as ideias à vontade
Escrever é o tempo todo num momento
Quem escreve
É sempre aquele que habita o pensamento
É sempre o sim ou não do sofrimento
É sempre o não querer o mal menor

Quem escreve
Rebenta pelas costuras de alegria
Às vezes tem o nome que não queria
Às vezes tem o nome de escritor.

Fernando Tordo - O Escritor


Como surge uma ideia? De onde vem ela? E que mecanismos, mais ou menos escondidos, possuímos e são activados para permitir o seu desenvolvimento, percorrendo caminhos que muitas vezes não faziam parte do guião inicial?
Se o processo criador tem quase sempre uma vertente inexplicável, normalmente remetida para o subconsciente onde se estabelecem associações quase fortuitas entre passado e presente, próximo e distante, amor e ódio, amigos e inimigos, o que fomos e o que somos, existe contudo uma parcela que tentamos explicar, justificar ou dissecar, com um conjunto de qualidades e defeitos que identificamos no lado consciente que nos forma.
Olhamos para a atenção que dispensamos ao mundo que nos rodeia, para a capacidade de síntese ou de descrição que desenvolvemos, para o gosto com que tentamos traduzir a realidade através de uma linguagem diferente, ainda que as palavras, a música ou as imagens que utilizamos sejam aquelas que todos utilizam… apenas tentamos combiná-las de forma distinta. E depois, surge o motor que faz mover toda esta engrenagem consciente e inconsciente, que junta as peças do puzzle de modo a começar a dar forma à imagem, a fazê-la parecer-se com algo que faça sentido… para nós… e para os outros: a necessidade. Porque a partir do momento em que uma ideia se forma e o seu desenvolvimento tem inicio, é posta em marcha uma panóplia de recursos que consomem muita da nossa atenção, uma necessidade extrema (não totalmente mas quase) de expressar o que se quer da forma que se quer e que, por ironia do destino, não vem quando se quer, mas quando ela, a ideia, quer…
E pode nunca voltar a vir.
Não sei se possuímos a capacidade de criar o momento capaz de gerar a necessidade de conceber, desenvolver e expulsar uma ideia, ou se é o nosso “eu” mais escondido quem faz esse trabalho cabendo-nos a nós, dominadores da vontade e da razão, a função de receber os sinais e mostrar disponibilidade para os libertar sob uma qualquer forma de arte.
Mesmo que nunca ninguém venha a gostar.
Porque, uma vez ultrapassada a óptica meramente comercial, não importa se existe um milhão, um milhar ou um único ser a gostar daquilo que fazemos. Não o fazemos por eles mas por nós, porque foi essa a forma encontrada que melhor exprime o que queremos dizer, e isso é uma necessidade que temos de transmitir, não uma vontade que o outro tem de receber. Pode acontecer haver quem se identifique e faça gosto em experienciar o que de tão fundo nos saiu, mas encontrar alguém em quem uma obra reflicta algo tem de ser uma consequência e não uma causa.  
A vontade premente de libertar o que sentimos para que o peso nos saia de cima, essa, é só nossa. E surge nos momentos mais inconvenientes, inesperados, engraçados até. Porque podemos estar duas horas em frente a um teclado, uma folha de papel ou uma tela e nada mais do que uma crescente frustração se forme no nosso horizonte interior, como podemos estar num café, no metro ou no escritório e sentir um impulso de tal forma arrebatador que, se não registarmos o que dele é gerado, desaproveitamos o ímpeto deixando passar o “momento mágico” em que o que sentimos está em sintonia com a forma como o exprimimos. Podemos mais tarde tentar replicar as sensações dessa “magia”, mas por certo não sairá como se o tivéssemos feito no instante em que sabíamos ter os astros alinhados.   
É provavelmente a isto que se chama inspiração ou insight. Mas esta aparente falta de controlo sobre o “como” e o “quando”, e a constante tentativa de domar esta aleatoriedade, estruturando o livre brotar de algo que segundos antes podíamos nem imaginar que possuíamos, em algo compreensível, traduzido para uma linguagem na qual nós e os outros possamos identificar qualquer coisa, permanece um mistério para mim. Esta dualidade, se por um lado é o que faz mover a arte, por outro torna a vida de um artista tão incerta, insegura e imprevisível… e se deixa de vir até ele a água límpida desta fonte criadora? E, mesmo que ela não deixe de correr dentro de si, se lhe foge o engenho para dominar a corrente e fazer dela o espelho de água onde muitos possam ver o próprio reflexo?
Os “ses” que em nós plantam o medo são os mesmos que nos fazem avançar. Se nunca mais se der esta confluência de estados, tanto pior, mas se por uma vez na vida a houvermos experimentado e tivermos tido a sorte e a arte para a ter aproveitado, então, ainda que fiquemos com pena de não voltar a sentir tamanha sensação, temos a certeza de ter experimentado algo que alguns nunca chegam sequer a sentir o aroma.
Um pouco como estar apaixonado, só que numa versão mais rara.


“As pessoas que têm um lado criativo e não o vivem são os clientes mais desagradáveis. Eles fazem de uma colina uma montanha, preocupam-se com coisas desnecessárias, estão loucamente apaixonadas por alguém que não merece tanta atenção, e assim por diante. Existe nelas uma espécie de carga energética flutuante que não está ligada ao objeto certo, e por isso elas tendem a aplicar um dinamismo exagerado à situação errada.”

Marie Louise Von Franz in A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas, Paulus, 3ª edição 2002


Lisboa, 12 de Janeiro de 2018

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