A Feira

Descobri recentemente mais um motivo pelo qual gosto tanto de feiras. Não das feiras onde se negoceia roupa contrafeita e toda a espécie de bugigangas ultrapassadas, das mais hi-tech como os DVDs ou os CDs às tradicionais loiças, talheres, panos ou toalhas de qualquer índole, que me parece sempre já ter visto na “casa-museu” da minha avó ou de uma tia-avó, e cujas razões para que tenham perdurado no tempo se prendem com um misto entre um gosto genuíno pela marca de uma época passada e uma vontade de, através dos objectos, não permitir que os entes que eles nos lembram, nos fujam tão depressa.
Do mesmo modo, já não me fascinam as bancas temáticas de selos, postais, moedas, pacotes de açúcar, cromos e outros artigos tão inúteis quanto o orgulho de que nos enchiam quando consultávamos a colecção que em conjunto formavam e que, passada a era do material para a era do digital, não deixam de transformar a nossa casa no museu para o qual um dia os netos olharão tal como nós hoje olhamos para a casa dos nossos avós. Em tempos cheguei a dispensar a minha atenção ao que estes “antiquários dos pobres” tinham para venda, mas hoje julgo que apenas os alfarrabistas resistem a esta era da modernidade dos costumes com que a vida me vai mudando. Talvez porque a forma dos livros é a mesma há cem anos, apesar das tentativas de assalto e violação continuas mas sem sucesso (felizmente) por parte de fotocópias e-books, e tablets.
As feiras que fazem o meu dia têm ginjinha, farturas (que, com o avançar da idade, me começam a “cair mal”), pipocas, algodão doce, bifanas e pão com chouriço; concertos de música pimba e imitações mais ou menos rascas de bandas de renome; bailaricos onde dançarinos e “pés-de-chumbo” bailam lado a lado, longe da presença dos pruridos da night; ranchos que nos trazem sons de sempre e um “gostinho a antigamente”; rifas onde o brinde é uma certeza à partida, ainda que possamos ficar com um balão ou um rebuçado por um ou dois euros na mais bonita inversão do binómio probabilidade-beneficio quando comparado com o Euromilhões; jogos para derrubar objectos que, de tão fáceis que se nos afiguram, largamos logo o euro para constatarmos, mal nos colocam na mão as esponjas (mais leves que o ar) que é suposto lançarmos, de que fomos enganados; vendas de doces de outros tempos como chupas em forma de chucha que me levariam uma tarde inteira a desbastar e ainda assim, creio que se me gastava a língua antes de se acabar o açúcar; brinquedos que já não se usam a não ser pelos miúdos que, devido à idade ou ao gosto que ainda fazem em ser crianças, insistem em disparar uma simples espingarda de água ou de ventosas (desde que não se mostre numa rede social porque então, torna-se “viral” e traumatiza as criancinhas); diversões de toda a espécie, dos carrocéis mais simplórios para dar o direito aos mais pequenos de serem felizes, passando pelos “carrinhos de choque” onde os putos têm oportunidade de mostrar os primeiros orgasmos da sua virilidade, até às montanhas russas mais ou menos assustadoras (nestas feiras nunca o são em demasia) nas quais quase sempre “pico o ponto” de cada vez que lá vou, apesar do friozinho na barriga quando o click que me prende ao assento me diz: agora vais mesmo voar; estacas e tijolos de aspecto duvidoso que sustentam grande parte dos divertimentos, como que para aumentar os índices de adrenalina, reduzindo ao mínimo a nossa percepção do nível de segurança ao qual nos vamos prender para sermos lançados; “mânfios” do ar mais “manhoso-presidiário-chunga” que só encontro naquele ambiente, mas que ali aparecem como os “doutores da minha segurança” em quem me vejo obrigado a confiar se quiser sair dali com vida; barulho de máquinas, anúncios contínuos e repetidos ao microfone, luzes de todas as cores e alternâncias, azáfama, movimento e uma série de estímulos combinados que conseguem conduzir-nos por um estado de “deixa andar” (se eu fosse ordinário diria “que se foda”) o qual os mais novos reconhecem melhor em frente ao visor de um aparelho tecnológico do que nestas experiências às quais (ainda) chamamos “reais”…
Se eu olhar para cada um destes aspectos, provavelmente não gosto muito de nenhum deles (excepção feita às comidas, claro). Mas o conjunto resulta tão bem nas sensações que por mim passeiam de cada vez que me vejo no meio destas feiras que pouco importa se gosto menos de subir a vinte metros de altura ou se ganhei um CD dos Diapasão quando já nem leitor tenho em casa.
Poderia explorar outras ideias que me vêm à mente a propósito destas festividades de Verão como o facto de, ao terem feito parte da minha infância, se revestirem da importância que hoje lhes atribuo, ou a questão de ali conviverem diferentes classes sociais como em poucos meios se vê (talvez na praia) pois no cagaço com que nos borramos, por exemplo na roda gigante (nós, os que temos vertigens) quando o vento nos vai enregelando à medida que, devagar, o vamos desafiando, é igual sejamos nós o punhos de renda da alta finança ou o grunho lá do bairro. A razão pela qual tanto gozo me dá estar neste lugar é a sensação de me movimentar num sítio que hoje é assim mas que há cinquenta anos já o era: estas feiras são autênticos documentos históricos que ainda não passaram para o papel. O ambiente é impossível de replicar, seja num parque de diversões ou numa feira de ladrões, porque esta simplicidade congrega ambas as experiências e amplia-as, não permitindo que o artificialismo tome conta da nossa vida enquanto por lá nos demoramos pois sabemos ao que vamos: a ginjinha sabe sempre ao mesmo, os mal-encarados vão-nos pedir o bilhete e trancar o ferro sobre o assento sem nos dirigir qualquer palavra (talvez uma baforada) e a música que ali ouvimos parece-nos toda igual, passem eles o Apita o Comboio (mega-sucesso que já conta com vinte e cinco anos) ou o último plágio do Tony Carreira.    
O motivo que andou escondido toda uma vida, pode não ser grande, mas gosto de aproveitar as coisas que aprecio do passado e estas viagens no tempo acontecem-me em cada Verão. Tenho a sorte de ter amigos que gostam de partilhar experiências destas, com ou sem filhos, porque as feiras assim, são dos poucos programas de lazer que não encontro o sentido em desfrutar sozinho.


Caparide, 16 de Junho de 2018

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