Os fados saíram do seu ambiente característico para viajar até à Marinha
Grande, mais concretamente ao auditório José Vareda no Sport Operário
Marinhense. O auditório assemelha-se mais a um pavilhão gimnodesportivo mas o
preciosismo prende-se mais com o enaltecimento do ambiente criado num local
polivalente do que com o enxovalho elitista pelo qual eu, rato de cidade,
poderia enveredar.
A noite era de Festival da Canção e por isso mesmo, ideal para uma fuga
daquele triste desfilar de pop pastiche
que este ano aconteceu em Portugal: a nossa música cumpria na perfeição a
missão de chamar a morte pelo segundo ano consecutivo, mas se no ano anterior, Amar pelos Dois primou pela
originalidade, coragem e uma melodia bonita, O Jardim não chegou a florescer remetendo o festival para o lugar
que ele tem ocupado na minha vida desde 1996 quando Lúcia Moniz conseguiu um
brilhante sexto lugar com O Meu Coração
Não Tem Cor composta pelo saudoso Pedro Osório. Foi por isso a noite
perfeita para ouvir música.
E com o ambiente bem pintado a meia-luz lá nos sentámos na mesa que nos
calhou, tal como num casamento quando temos que aceitar com risos amarelos e
alguma boa vontade a companhia que nos cai em sorte à volta do círculo que nos
força violentamente e encarar os olhares desconhecidos, o que raramente
acontece nos jantares de amigos em mesas corridas.
O pão, o queijo, os salgados e o chouriço que, juntamente com as bebidas,
constituíam as entradas já dispostas em cima da mesa, deram o mote para que eu
lançasse duas ou três palavras ao homem que se encontrava ao meu lado Por mim comia isto o resto da vida: queijos,
enchidos, pão, vinho. Só falta a sobremesa: adoro isto… respondeu-me que
também gostava daquilo mas que tinha de ter algum cuidado e perguntou-me como é
que eu conseguia permanecer magro a comer aquilo. Cortar numas coisas, sobretudo no arroz e na batata, para poder comer
outras, e treino no ginásio. Mas eu era gordo: perdi vinte quilos! “Era o
que eu devia perder”, disse ele concluindo de seguida que estava com cento e
vinte quilos!
Quando lhe perguntei se gostava de fado, o “Sim” com que me respondeu serviu
como entrada para o anúncio de que havia vivido em Lisboa. E é daqui? perguntei curioso. Não era: era alentejano e a mulher,
que o acompanhvaa à mesa do lado contrário àquele onde eu me encontrava, era da
Nazaré. Fugiu de casa aos treze anos de idade porque o pai, padeiro, queria que
fosse trabalhar com ele mas o meu “companheiro de conversa” não queria trabalhar de noite para os outros comerem de
dia. Não era baptizado pois o pai defendia que deveriam ser os filhos a
escolher a própria religião (para sorte do meu amigo, não tinha a mesma opinião
a respeito da profissão). Se calhar ele é
que tinha razão, diz ele com honestidade mas sem qualquer ponta de
saudosismo.
Enquanto os fados não começavam, íamos aprofundando este conhecimento que
só não foi mútuo uma vez que, por cada parcela de informação que deixo escapar
da minha vida ele oferece-me dez partes iguais do seu próprio percurso… Havia um lavrador (ou seria um prior?) lá na
terra que oferecia vinte escudos a quem se baptizasse. Aos treze anos
baptizei-me, recebi os vinte escudos e comprei o bilhete de autocarro para
Lisboa. Passei a primeira noite num banco da Avenida da Liberdade, junto ao edifício
do “Diário de Notícias”. Tinham-me dito que no “Diário de Notícias” saía uma
página com os empregos e eu queria ver a página do dia seguinte.
Mais tarde nessa noite confessou-me que tinha oitenta e um anos e a mulher
oitenta e três o que remete a sua chegada a Lisboa para o ano de 1950. Disse-me
ser casado há cinquenta e quatro anos, frase que faz nascer de imediato um sorriso
nos lábios da mulher que foi acompanhando com mudanças de expressão e alguma
atenção a conversa que entre nós foi fluindo. Quando lhe perguntei qual era o
segredo, começou por me responder com alguns risos (que não percebi se eram de
atrevimento se de paixão… talvez ambos) para esclarecer que o segredo é estimarmo-nos muito e sabermos
respeitar o casamento. Nós somos um… Mas isto aconteceu no segundo
intervalo das actuações, na altura em que chegaram as filhós e o café depois de
termos enchido o bandulho com tudo a que tínhamos direito, e a um preço que
deveria fazer corar de vergonha os valores praticados em Lisboa pelos escroques
que se aproveitam do fado para manter as casas do género prisioneiras das
elites, coisa que o fado nunca foi.
Fui trabalhar para um
restaurante próximo do Largo do Calvário (o nome contemplava a palavra “Andorinhas” mas não o
memorizei nem não me ocorreu perguntar uma vez que a conversa prosseguiu o seu
caminho). Davam a comida, que era o mais
importante, a dormida, numa pensão ali perto e ainda pagavam qualquer coisita.
A música interrompeu a história neste ponto mas nem por isso o lamentei:
gosto de fado quanto baste para o poder apreciar sem me deixar dominar por um
conhecimento demasiado aprofundado e fui apreciando os artistas, com a certeza
de qua a segunda parte do filme da vida do meu companheiro começaria mal
terminasse o primeiro período da verdadeira música popular. A avaliar pela
forma como muita da gente que nos rodeava estava trajada, notava-se que é um
acontecimento e tanto. Os enfeites estavam a preceito com um xaile ou uma
guitarra a ajudar a criar ambiente para que se pudesse cantar o fado.
Tirei a quarta-classe à noite
pois com treze anos já não podia ir estudar com os putos disse-me ele depois dos merecidos
aplausos que encerraram a primeira parte. Sempre
trabalhei de dia e estudei à noite: passei depois para a “Marquês de Pombal”, a
escola industrial que por sorte era ali perto, e a seguir entrei para o Técnico,
em Engenharia Electrotécnica. Acho que sou um autodidacta conclui ele com
orgulho. Quando lhe perguntei se trabalhava no ramo, comunica-me que possui a “maior
fábrica de materiais eléctricos da Peninsula Ibérica, AL – Fábrica de Materiais
Eléctricos, S.A.”: cento e vinte
colaboradores em Portugal, cinquenta em Bilbau e quarenta na Polónia. Já dou de
comer a muita gente.
Não sinto particular admiração pela gente que dedica a sua vida ao trabalho
mas não consigo deixar de me encantar com a genuinidade e o orgulho que sentem
aqueles que conseguiram alcançar algo na vida: o sentimento de regozijo pelas
metas alcançadas, isso sim, é algo que me fascina.
O peso excessivo que facilmente lhe poderia abandalhar o aspecto não
belisca o ar destinto que aparenta e que a sua conversa, educação e simpatia para
tal contribuem. Os óculos cuidados digladiam-se com algumas unhas esquecidas
pelo corta-unhas que se lhe prolongam nos dedos (e que desconfio não se deverem
à guitarra). E finalmente tomo conhecimento do seu nome e do da mulher: Armando
e Odete Lopes (daí o “AL” no nome da empresa).
O tio da minha mulher tinha uma
mercearia na Rua (? não me lembro do nome…) e gostava
muito de jogar às damas. Eu também gostava e foi por jogar com ele que a
conheci. A minha mulher “foi-me buscar a Lisboa” e viemos morar aqui para a
zona. Eu tinha cá na ideia que não queria casar com uma rapariga de Lisboa.
Estive dois anos na Índia onde
fiz a tropa e ensinei português. Quase que jurava ter ensinado o nosso
primeiro-ministro António Costa. Depois estive seis anos embarcado na marinha
mercante até que me estabeleci por cá.
O início de nova série de fados traz-me alguma satisfação: gosto desta
alternância, do espectáculo dentro do espectáculo, o público entrelaçado com o
intimista, e tudo isto bem suportado pelo caldo verde, pelos enchidos e pelo
pão e regado com o que bem entendêssemos: no meu caso comecei no vinho mas não
quis arriscar perder o foco da conversa que me preenchia os interlúdios e mudei
para a água após o segundo copo.
A música é boa mas a conversa é melhor, no entanto, o intervalo demasiado
longo, se me permite tirar proveito deste contacto tão inesperado quanto simpático,
traz consigo o sono e alguma saturação. Mas lá vou conhecendo um ou outro fado…
Quando a tristeza me invade, Canto o fado…
que vai desfilando à nossa frente.
Até que surge a última oportunidade para que o meu amigo Armando Lopes
complete a sua história. Mas sou que começo por lhe falar da minha família, da
Marinha Grande e de como ali vivi até aos cinco anos, do porquê da minha mãe lá
morar e de eu nunca ter deixado de lá ir. Uma espécie de retribuição (sem
qualquer obrigação) pelo belo tempo que me proporcionou. Falar da Marinha deu o
mote para avançarmos no tempo… Vivi na
Ordem durante vinte e dois anos, perto da casa do “Chico Pintassilgo” diz o
Armando perguntando-lhe eu de seguida se esse não era o Morgado? Sim, o Francisco Morgado. Sei quem é (ou
quem foi): chegou a ir almoçar a casa da mãe que fica muito perto da casa desse
Morgado.
Há trinta anos na Marinha Grande, tem um bisneto com três que sai ao avô no
que toca ao apetite. Repete que deveria perder vinte quilos, tal como eu.
Falamos sobre Lisboa e sobre o fado que ou é turístico ou elitista. Digo-lhe
que por doze euros não se consegue uma noite de quatro horas de fados com caldo
verde, chouriço assado, bebida, sobremesa e café. O fado em Lisboa está mais “postiço”
(mas não creio que ele tenha ouvido esta parte).
Continua a trabalhar embora tenha entregue a gestão da fábrica a um filho.
No entanto, lá vai aparecendo “para ver como vão as coisas” e dar a opinião
sempre que a mesma lhe é solicitada. Tem actualmente uma pequena fábrica de deck (que me explica de forma sucinta que
mais não é do que pavimento em madeira) em frente a sua casa que gere “para se
entreter”.
Este foi meu colaborador;
aquele foi meu fornecedor… vai dizendo à medida que passa os olhos pela sala enquanto a luz volta a
baixar para introduzir a terceira e última parte do espectáculo.
No final despeço-me do meu amigo Armando, um simpático industrial à antiga
que me ajudou a tornar aquela noite mais memorável do que eu pensava: dos
fadistas, um homem e duas mulheres, recordo apenas o apelido de uma delas mas a
conversa, essa ficou gravada.
Biblioteca de São Domingos de Rana e Caparide, 13
de Maio e 10 de Junho de 2018
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