O sol é diferente a cada manhã quando se cruza no caminho que diariamente
percorro para o trabalho ao longo da marginal. E mesmo nos dias em que se
esconde por trás das nuvens, ele está lá para conferir ao dia uma variação nos seus
matizes e arrancar a rotina a si própria, tornando único o que, por inércia
mental ou desatenção, teima em ser por mim olhado (e vivido) sempre da mesma
maneira, por defeito, como garantido.
Antes das sete da madrugada o trânsito é amigo libertando-me a atenção para
os detalhes que constroem cada momento fazendo do dia uma experiência única, um
bloco singular acrescentado ao edifício da vida
Quando o dia está cinzento, as nuvens carregadas pesam-me no semblante mas
o mar que se transforma em rio à medida que percorro a estrada costeira mostra-me
que até (ou sobretudo) as paisagens tristes encerram e libertam grande beleza.
Se a Primavera ou o Outono, por via da inclinação do eixo da Terra, do
movimento de translação ou da mudança de hora, deposita o sol à minha frente
(todas as manhãs me desloco no sentido poente-nascente), é outra luz,
alaranjada, que se derrama sobre outra água, mais azul, para pintar o postal
que, mostrando sempre o mesmo lugar, devolve trezentos e sessenta e cinco
ensaios diferentes com que o artista vai aprimorando a sua obra.
O caminho é automático e dentro do carro, a vida divaga: ora deixo que os
pensamentos mais teimosos fluam livremente, ora canto uma qualquer canção pela
n-ésima vez, ora vou ouvindo os noticiários e as rúbricas de companhia que
nascem do rádio. Por defeito, se a luz me encandeia, desloco-me para a via da
esquerda de modo a não maltratar algum ciclista corajoso que teime em passar os
vermelhos numa estrada que não foi feita para ele.
E vou-me aproximando de Lisboa, do movimento, do trabalho e do campo minado
de parquímetros em que se transformou o lugar onde supostamente eu deveria
ganhar dinheiro e não gastá-lo antecipadamente. Largada a viatura num dos
redutos, cada vez mais escassos, onde ainda é possível fazê-lo sem encher os
bolsos de quem nem sempre merece, levo o livro (sempre um livro) para a
esplanada do Zêzere onde, antes ainda
das sete e meia, me sento e tomo o café (que quase sempre pede um bolo para
entrada) que me acorda para o dia. São os dias amenos ou em que o calor mais se
faz sentir (àquela hora nunca é demasiado) que me deixam sentar no exterior
tornando o momento zen do dia mais
aprazível.
À hora a que chego já a coluna de táxis se encontra preparada para atacar a
jornada, com os “soldados” que a compõem aglomerando-se em conversas
futebolísticas ou politiqueiras, sempre de uma sabedoria que mereceria uma
atenção especial da minha parte mas que por preguiça não vou aqui transcrever.
Os taxistas são um bando de
arruaceiros.
Mas estes não: são gente que conversa normalmente como qualquer outro
frequentador de um qualquer café de bairro onde por vezes vou ver a bola; são
gente como o sr. Vilela que, ao pedir o seu copo de leite e a sandes do
costume, tem sempre uma palavra jocosa para o Zé, o empregado, num salutar
embate Sporting-Benfica; são gente afável que não abanam os carros da Uber nem conduzem como se tivessem a
revolta à flor da pele num cocktail
de Parkinson-Tourette-Epilepsia-Obsessivo-compulsivos,
quais suicidas tresloucados ao volante de um transporte de passageiros à solta
pelas ruas da capital.
Quando damos o salto do geral para o particular, do preconceito para o
conceito, do corporativo para o activo, quando colocamos rostos humanos nos
intervenientes de uma corporação, humanizamo-los. Não são estes taxistas em
particular que mudam a minha opinião sobre a classe porque estou em crer que,
fossem outros os homens que diariamente encontro ao pequeno-almoço, arrancando
a conta-gotas à medida da clientela que se aproxima, e eu formaria esta mesma
impressão a respeito destes homens. Porque nada do que sei sobre eles os
qualifica enquanto pessoas. Apenas lhes confere esse epiteto: perante mim,
tornam-se pessoas antes de serem taxistas.
Pela esplanada do Zêzere já
gastei muitas horas matutinas e consumir inutilidades que a internet me
disponibiliza, já ocupei muitas mais horas com leituras de interesse acrescido
quando a alternativa é arrancar para o escritório, já me acompanharam algumas
(poucas) horas de escrita no meu portátil jurássico (as horas são poucas porque
o PC foi ganhando peso em relação aos seus pares – e por isso transporto-o
pouco - e a bateria não me permite escrever mais do que meia página). Mas todas
estas horas seriam diferentes se a companhia que os “meus amigos” taxistas me
fazem todas as manhãs não existisse. Cada livro seria diferente se a sua
leitura não fosse intervalada por uma provocação clubística; cada deambulação
por um estudo ou uma notícia inútil e desactualizada perderia o sentido se não
fosse enquadrada por um cumprimento a um desconhecido, um dos gestos mais
interessantes que nós, humanos, podemos oferecer; cada período a olhar para o
vazio preenchido pelos carros que à minha frente se deslocam pela Estrada da
Luz não seria notada enquanto tal se não fosse religiosamente interrompida pela
Paula, colega de trabalho e ainda mais madrugadora do que eu, que se despede à
saída do Zêzere (senta-se sempre na
mesma cadeira, no interior do estabelecimento) de partida para a Torre onde
ambos trabalhamos, pouco antes de eu lhe seguir o exemplo.
E apesar de cada dia ser diferente, estes personagens marcam uma presença quotidiana
na minha vida e quando eles deixarem de me aparecer (ou eu deixar de lhes
aparecer), tudo será diferente durante um tempo (mais para mim do que para
eles, julgo eu), mas tudo voltará a ser normal pouco depois.
Lisboa, 22 de Junho de 2018
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