Marraquexe (parte 1/2)

Dia I

Ficámos mais de meia hora retidos no controlo de passageiros na chegada ao aeroporto de Marraquexe o que me deu as boas vindas ao “resto do mundo”, a mim, que nunca havia saído da União Europeia e, como tal, nunca antes havia utilizado um passaporte.
Do avião, a cidade laranja, plana, estendida no meio da planície, lembrou-me os lugares exóticos que apenas havia visto no cinema quando algum personagem ia parar a uma cidade perdida no meio do deserto.
O motorista do transfer que nos conduziu para o Riad que ficava dentro das muralhas que delimitavam a cidade velha, a Medina, chamava-se Abdel e a simpatia colava com um certo ar de gingão no qual dava preferência ao inglês em vez do francês por ser um idioma mais “à macho” no que toca à impressão que pretendia causar junto das turistas. O trajecto para o Riad foi uma aventura com os carros, motas, burros, bicicletas e peões como se de uma autêntica roda-viva de GTA esquizofrénico da vida real se tratasse. Ao mesmo tempo que tentávamos não acertar em ninguém durante o caminho, o guia ia-nos apresentando um pouco do que era Marrocos: The Rain City onde acabávamos de chegar; The Rain City? perguntei eu; Yes: the Rain City confirmou ele; Casablanca is the White City; Chefchaouen is the Blue City; Ok: Marraquexe é a RED CITY, concluí; A Medina e os palácios, os jardins, o trânsito e a praça central; Os Montes Atlas (cuja visita despertou logo a minha curiosidade); A origem berbere do povo marroquino (a não árabe)…
Tínhamos entrado noutro mundo, tão perto e tão longe de Lisboa.
Mal chegámos os quatro ao Riad (eu, o Vitor, a Patrícia e a Amélia) completámos o grupo de seis que havíamos formado (o Filipe e a Inês haviam chegado dois dias antes para “fazer o reconhecimento”). Pouco calor (face às minhas expectativas) e uma riqueza de cheiros, cores e personagens povoaram o trajecto para o almoço no terraço do Café de France, na Jemaa El Fna, a praça central da cidade. Pelo meio, na pequena volta de reconhecimento à praça, recusei provar um sumo de fruta fresca for free (imaginei logo uma diarreia galopante a caminho mal provasse aquele “veneno”, tantos foram os avisos para não tocar em fruta, água, gelo, salada ou qualquer outro alimento que não fosse fervido, desinfectado, engarrafado, embalado ou esterilizado), vimos as serpentes e apertei a mão ao homem do macaco, macaco esse que foi empoleirado no braço do Vitor (Epá que merda, aquele gajo pôs-me o macaco no braço!). À entrada do Cafe de France, à simpática recepção do empregado que nos acolheu seguiu-se, após a nossa passagem, a gritaria com que expulsou um miúdo do interior do estabelecimento como se estivesse a enxotar um cão vadio. Esta gente é tão diferente…
Saboreámos os Tajines e o Cuscuz com vista para a praça o que nos permitiu observar a vida sem outro sentido que não o da simples continuidade com que os comerciantes que iam assentando as tendas resignadamente aceitavam… sorte a minha em poder simplesmente discorrer sobre isto, sem me ver obrigado a despender o tempo todo a lutar pela sobrevivência, pensei eu. Fomos moderadamente enganados (claro) ao pagar um preço de Lisboa por uma refeição em Marraquexe que, estando saborosa, estava também inflacionada para os padrões locais. Mas faz parte da experiência.
Chegados ao Riad, acertámos com o François, o dono do hotel, a excursão aos Montes Atlas, mais concretamente ao vale de Ourika e às quedas de água (Yes!) por um valor que, ainda que possa constituir novo roubo, não me deixou tal sensação e no fim, mais do que tudo o resto, é isso que conta.
O Filipe descomplicou o que me parecia problemático: a higiene, a segurança, a orientação… afinal Marraquexe é uma cidade muito diferente à qual facilmente nos ambientamos. A partir daí, apegarmo-nos afigurou-se como a sequência lógica para esta mistura de sensações em que todos mergulhámos. Aguardo mais algum tempo para ir dar um mergulho ao tanque no terraço do Riad: so far do good mas também ainda não caguei por isso não posso afiançar da veracidade dos avisos que me amedrontaram o espírito.

A saída para jantar constituiu uma aventura ao comportar as razias que estas lambretas do pós-guerra nos faziam constantemente, a par das bicicletas e de um ou outro carro perdido que circulavam pelas ruelas do interior da Medina. Peões, motociclos, velocípedes carroças e quaisquer outras estruturas estão em pé de igualdade nas ruas de Marraquexe: um peão obedece às mesmas regras que qualquer viatura e o oposto também se verifica. A habilidade com que estes tipos ziguezagueavam pelo meio de nós durante o trajecto fez-me acreditar que existe uma profissão única em Marraquexe: “serpenteador da Medina”. Tenho a certeza que há tipos que passam o dia a gozar o prato de fazerem passagens razantes às lojas, bancas e peões num poço da morte à escala real a evocar a habilidade presente na atracção da velhinha Feira Popular de Lisboa que tanto fascínio provocava em mim.
Ver um tipo de túnica e chinelos Nike ou com um equipamento da selecção italiana, espanhola ou qualquer outra quando nada mais condizia confere um colorido diferente a esta gente. Marraquexe é heterogénea e isso nota-se sobretudo nas mulheres, desde as que mal mostram os olhos até às que revelam mais do que o que os princípios sagrados agrilhoam.
Jantámos no Cafe Arabe, um luxuoso espaço no centro da cidade, acolhedor em tudo e com um preço a condizer, sem diferença para um repasto bem razoável em Lisboa. O único problema foi a comida não valer a ponta d’um caralho. Tirando isso, foi muito bom.
Regressámos pelas ruas com as lojas fechadas. Como seria bom se fossem sempre assim… Evitámos as indicações enganadoras dos putos para nos levarem para caminhos de onde só eles nos conseguiriam tirar (estes cabrões aprendem cedo a ser aldrabões) e entrámos na Jemaa El Fna cuja noite movimentada é uma atracção obrigatória nestas paragens. Vejo todo este movimento, actuações de batuques e adufes distarem poucos metros entre si com os sons a misturarem-se numa mescla sonora de “quero lá saber” e constato que estes tipos são mesmo comerciantes (lembro-me do Oliveira da Figueira, o comerciante português do deserto das histórias do Tintin).
De volta ao Riad, ficámos com a certeza de que andar a pé por estas ruas deveria ser alvo de uma atenção especial, um bilhete pago talvez… é que em Portugal pago para sentir adrenalina quando aqui consigo tê-la de borla (até um tipo a palitar os dentes em cima de uma mota em andamento se cruzou connosco). Tenho a certeza de que este pequeno trajecto da rua que conduz ao Riad ficará gravado na minha memória como um ponto alto desta viagem. Bastava uma razia destas em Portugal para eu parar e ficar a olhar para o “habilidoso”. Aqui, se eu parar para olhar, já outros dois ou três “habilidosos” passaram por mim antes de eu retomar a marcha.


Dia II

Marraquexe é uma daquelas cidades exóticas que nos filmes de acção são apresentadas de forma repentina com algum enigma à mistura, ao estilo Indiana Jones, Em Busca da Esmeralda Perdida ou James Bond quando é revelado o lugar onde determinada personagem é passível de ser encontrada. O herói muda instantaneamente de cenário e o filme ganha um novo fôlego. Estas cidades existem e são mesmo como os filmes as retratam!
Ao pequeno-almoço duvidei do sumo de laranja que me serviram. Já no duche tinha cerrado os lábios na tentativa inglória de não ingerir gota de água, paranoia herdada dos conselhos dos experientes turistas portugueses que por aqui passaram. Até parece que qualquer sumo natural ou água corrente contivesse o “micróbio da caganeira”… com o tempo vou começando a cagar no assunto, pese a contradição da expressão uma vez que ainda não caguei a sério desde que aqui cheguei, ontem de manhã.
Depois de indagar com o Vítor o que teria levado um tipo como o François, o dono do Riad, a vir aqui parar, ele perguntou-lhe após o pequeno-almoço: depois do divórcio, e aproveitando a experiência que tinha como facilitador de viagens para esta zona, juntou umas coroas e resolveu emigrar. Recuperou (ou melhor, reconstruiu) o Riad, obra que lhe tomou mais de três anos (um de prospecção e mais de dois para a construção) e por aqui se estabeleceu montando um negócio no qual presta um bom serviço.
Esta mescla entre dois mundos, o islâmico e o ocidental, que vamos encontrando na rua é curiosa e até engraçada: o tradicional e o moderno a deambularem lado a lado numa segurança que sinto como total. Quaisquer mitos em que eu pudesse ter acreditado a este respeito, ao segundo dia já foram desfeitos.     
As passadeiras de peões são nesta terra verdadeiras passadeiras. O trânsito caótico é substituído por um tráfego regulado por uma ou outra regra ou semáforo assim que saímos da Medina em direcção ao Jardim do Hotel Mamounia onde educadamente nos barraram a entrada por virmos (eu e o Vitor) de chinelos! Para ver um jardim, caralho?!
Foi fora da Medina que me apercebi de como pode ser parcial a nossa impressão de um lugar quando não expandimos a vista além do muro que delimita o nosso raio de acção: a Medina é a Alfama-Mouraria de Marraquexe, a confusão onde os carros mal têm lugar, os bairros onde os verdadeiros habitantes locais ainda subsistem, os artesãos, carpinteiros, sapateiros à beira da rua, de porta aberta, a lembrar as cidades medievais dos livros de História, o comércio tradicional em maioria contra as grandes superfícies, a sujidade que até tem um gostinho especial quando comparada com a “Alfama-casinha-de-bonecas” que infectou Lisboa… os cheiros a incenso, especiarias, lixo, fruta ou bosta de burro ou de cavalo pairam entre as mil e uma cores que dão vida às ruas delimitadas pelo laranja que dá o nome “Red” a Marraquexe. E movermo-nos no meio deste barulho tem um encanto que não encontramos fora da Medina, embora o cenário não seja feio. Percebo agora que Marraquexe (e Marrocos) também possua uma dimensão de “terra normal” com profissões normais a funcionar normalmente.  
Apanhámos uma caleche para o Jardim Marjorelle onde o Yves Saint Laurent viveu. A “posticidade” do parque não vale (na minha opinião embora não fosse unânime) os 70 dirhams que pagámos para entrar mas não é mau de todo. Creio que me arrependeria se não tivesse lá entrado pois nunca saberia o que teria perdido e sabe bem atender às pretensões de todos (a minha já foi atendida com a ida amanhã aos Montes Atlas). Por outro lado, o jardim fica no trajecto que a caleche fez para nos mostrar a cidade fora da muralha, a zona rica e um tanto agridoce, com mansões situadas no meio de um calor e de uma região desenxabidos, um pouco descaracterizados como são normalmente os redutos dos ricos nas terras dos pobres.
Uma característica une estes tipos: uns dentes de merda. O empregado do Cafe de France onde almoçámos ontem, impecavelmente fardado, com um aprumo como eu nunca experimentei nos tempos em que vestia fato e gravata, possuía um dente perdido no meio da cremalheira invisível com que nos abria um sorriso que só para nós era desconsolador. Em Portugal ou em Marrocos, os dentistas deveriam ser comparticipados.
Regressados à Medina, voltámos às insistentes ofertas de rua para massagens ou haxixe (se não queremos uma, supõem que pretendemos a outra… WTF?!). Voltamos a experienciar os "carrinhos de choque" nas vielas em torno da Jemaa El Fna, movimentos aleatórios a lembrar os carros telecomandados da minha infância mas, ao contrário destes que embatiam em tudo o que era móvel, rodapé ou pés de quem quer que estivesse no caminho, estas motas apitam e seguem sem se tocarem, com uma perícia que chego a invejar. Com os retrovisores recolhidos ou ao telemóvel; com um, dois ou três passageiros, com ou sem motor, estranhamente estes tipos transmitem-me segurança: parecem saber o que fazem na estrada, ao contrário do trânsito de Lisboa onde, por mais pinturas, sinais, regras, semáforos ou radares que coloquem na via, não há meio de eu confiar na condução do outro como aqui.
Hora do descanso antes de mergulhar no tanque.

O Afhid é uma espécie de caseiro aqui do Riad. Hoje aconselhou-nos alguns restaurantes medianamente turísticos para comer a Pastilla ou Peixe (já cago Tajines pela boca). É berbere e faz questão de o dizer reforçando a sua condição de não-árabe. Vai passar férias a Portugal em breve mas fala numa viagem pela Europa: tem amigos por lá espalhados.
Seguimos a sugestão dele e jantámos no Café Kessabine Medina, no terraço com vista sobre a Jemaa El Fna que é mais espectacular à noite do que de dia (embora não necessariamente mais bonita: quanto a isso, creio que as diferentes belezas do dia e da noite não permitem comparações). Um dos pastéis que comi tinha carne picada (ai o fantasma da caganeira a começar a soprar-me ao ouvido).
Terminado o jantar fomos dar uma volta pela praça e resolvemos passar bem pelo meio das bancas de comida… que puta de aventura! Se eu achava que os comerciantes eram chatos, estes putos pareciam carraças a tentar placagens consecutivas: mal nos livrávamos de um logo aparecia outro do nada para retomar o discurso, os toques e a tagarelice espanhola-inglesa-francesa da qual eu percebia tudo sem ouvir nada. Uma experiência e tanto.
Amanhã: Atlas!

Marraquexe e Caparide, 30 de Julho a 5 de Agosto de 2018

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