Dia I
Ficámos mais de meia hora retidos no controlo de passageiros na chegada ao
aeroporto de Marraquexe o que me deu as boas vindas ao “resto do mundo”, a mim,
que nunca havia saído da União Europeia e, como tal, nunca antes havia
utilizado um passaporte.
Do avião, a cidade laranja, plana, estendida no meio da planície,
lembrou-me os lugares exóticos que apenas havia visto no cinema quando algum
personagem ia parar a uma cidade perdida no meio do deserto.
O motorista do transfer que nos
conduziu para o Riad que ficava dentro das muralhas que delimitavam a cidade
velha, a Medina, chamava-se Abdel e a simpatia colava com um certo ar de gingão
no qual dava preferência ao inglês em vez
do francês por ser um idioma mais “à macho” no que toca à impressão que
pretendia causar junto das turistas. O trajecto para o Riad foi uma
aventura com os carros, motas, burros, bicicletas e peões como se de uma autêntica
roda-viva de GTA esquizofrénico da vida real se tratasse. Ao mesmo tempo que
tentávamos não acertar em ninguém durante o caminho, o guia ia-nos apresentando
um pouco do que era Marrocos: The Rain City
onde acabávamos de chegar; The Rain City?
perguntei eu; Yes: the Rain City
confirmou ele; Casablanca is the White
City; Chefchaouen is the Blue City; Ok: Marraquexe é a RED CITY, concluí; A
Medina e os palácios, os jardins, o trânsito e a praça central; Os Montes Atlas (cuja visita despertou logo a minha
curiosidade); A origem berbere do povo marroquino (a não árabe)…
Tínhamos entrado noutro mundo, tão perto e tão longe de Lisboa.
Mal chegámos os quatro ao Riad (eu, o Vitor, a Patrícia e a Amélia)
completámos o grupo de seis que havíamos formado (o Filipe e a Inês haviam
chegado dois dias antes para “fazer o reconhecimento”). Pouco calor (face às
minhas expectativas) e uma riqueza de cheiros, cores e personagens povoaram o
trajecto para o almoço no terraço do Café
de France, na Jemaa El Fna, a praça
central da cidade. Pelo meio, na pequena volta de reconhecimento à praça,
recusei provar um sumo de fruta fresca for
free (imaginei logo uma diarreia galopante a caminho mal provasse aquele “veneno”,
tantos foram os avisos para não tocar em fruta, água, gelo, salada ou qualquer
outro alimento que não fosse fervido, desinfectado, engarrafado, embalado ou
esterilizado), vimos as serpentes e apertei a mão ao homem do macaco, macaco
esse que foi empoleirado no braço do Vitor (Epá
que merda, aquele gajo pôs-me o macaco no braço!). À entrada do Cafe de France, à simpática recepção do
empregado que nos acolheu seguiu-se, após a nossa passagem, a gritaria com que
expulsou um miúdo do interior do estabelecimento como se estivesse a enxotar um
cão vadio. Esta gente é tão diferente…
Saboreámos os Tajines e o Cuscuz com vista para a praça o que nos
permitiu observar a vida sem outro sentido que não o da simples continuidade
com que os comerciantes que iam assentando as tendas resignadamente aceitavam… sorte a minha em poder simplesmente
discorrer sobre isto, sem me ver obrigado a despender o tempo todo a lutar pela
sobrevivência, pensei eu. Fomos moderadamente enganados (claro) ao pagar um
preço de Lisboa por uma refeição em Marraquexe que, estando saborosa, estava
também inflacionada para os padrões locais. Mas faz parte da experiência.
Chegados ao Riad, acertámos com o François, o dono do hotel, a excursão aos
Montes Atlas, mais concretamente ao
vale de Ourika e às quedas de água (Yes!) por um valor que, ainda que possa
constituir novo roubo, não me deixou tal sensação e no fim, mais do que tudo o
resto, é isso que conta.
O Filipe descomplicou o que me parecia problemático: a higiene, a
segurança, a orientação… afinal Marraquexe é uma cidade muito diferente à qual
facilmente nos ambientamos. A partir daí, apegarmo-nos afigurou-se como a
sequência lógica para esta mistura de sensações em que todos mergulhámos. Aguardo
mais algum tempo para ir dar um mergulho ao tanque no terraço do Riad: so far do good mas também ainda não
caguei por isso não posso afiançar da veracidade dos avisos que me amedrontaram
o espírito.
A saída para jantar constituiu uma aventura ao comportar as razias que
estas lambretas do pós-guerra nos faziam constantemente, a par das bicicletas e
de um ou outro carro perdido que circulavam pelas ruelas do interior da Medina.
Peões, motociclos, velocípedes carroças e quaisquer outras estruturas estão em
pé de igualdade nas ruas de Marraquexe: um peão obedece às mesmas regras que
qualquer viatura e o oposto também se verifica. A habilidade com que estes
tipos ziguezagueavam pelo meio de nós durante o trajecto fez-me acreditar que
existe uma profissão única em Marraquexe: “serpenteador da Medina”. Tenho a
certeza que há tipos que passam o dia a gozar o prato de fazerem passagens
razantes às lojas, bancas e peões num poço
da morte à escala real a evocar a habilidade presente na atracção da
velhinha Feira Popular de Lisboa que tanto fascínio provocava em mim.
Ver um tipo de túnica e chinelos Nike
ou com um equipamento da selecção italiana, espanhola ou qualquer outra quando
nada mais condizia confere um colorido diferente a esta gente. Marraquexe é
heterogénea e isso nota-se sobretudo nas mulheres, desde as que mal mostram os
olhos até às que revelam mais do que o que os princípios sagrados agrilhoam.
Jantámos no Cafe Arabe, um
luxuoso espaço no centro da cidade, acolhedor em tudo e com um preço a
condizer, sem diferença para um repasto bem razoável em Lisboa. O único
problema foi a comida não valer a ponta d’um caralho. Tirando isso, foi muito
bom.
Regressámos pelas ruas com as lojas fechadas. Como seria bom se fossem
sempre assim… Evitámos as indicações enganadoras dos putos para nos levarem
para caminhos de onde só eles nos conseguiriam tirar (estes cabrões aprendem
cedo a ser aldrabões) e entrámos na Jemaa
El Fna cuja noite movimentada é uma atracção obrigatória nestas paragens.
Vejo todo este movimento, actuações de batuques e adufes distarem poucos metros
entre si com os sons a misturarem-se numa mescla sonora de “quero lá saber” e
constato que estes tipos são mesmo comerciantes (lembro-me do Oliveira da
Figueira, o comerciante português do deserto das histórias do Tintin).
De volta ao Riad, ficámos com a certeza de que andar a pé por estas ruas
deveria ser alvo de uma atenção especial, um bilhete pago talvez… é que em
Portugal pago para sentir adrenalina quando aqui consigo tê-la de borla (até um
tipo a palitar os dentes em cima de uma mota em andamento se cruzou connosco). Tenho
a certeza de que este pequeno trajecto da rua que conduz ao Riad ficará gravado
na minha memória como um ponto alto desta viagem. Bastava uma razia destas em
Portugal para eu parar e ficar a olhar para o “habilidoso”. Aqui, se eu parar
para olhar, já outros dois ou três “habilidosos” passaram por mim antes de eu retomar
a marcha.
Dia II
Marraquexe é uma daquelas cidades exóticas que nos filmes de acção são
apresentadas de forma repentina com algum enigma à mistura, ao estilo Indiana Jones, Em Busca da Esmeralda Perdida ou James Bond quando é revelado o lugar onde determinada personagem é
passível de ser encontrada. O herói muda instantaneamente de cenário e o filme
ganha um novo fôlego. Estas cidades existem e são mesmo como os filmes as
retratam!
Ao pequeno-almoço duvidei do sumo de laranja que me serviram. Já no duche
tinha cerrado os lábios na tentativa inglória de não ingerir gota de água,
paranoia herdada dos conselhos dos experientes turistas portugueses que por
aqui passaram. Até parece que qualquer sumo natural ou água corrente contivesse
o “micróbio da caganeira”… com o tempo vou começando a cagar no assunto, pese a
contradição da expressão uma vez que ainda não caguei a sério desde que aqui
cheguei, ontem de manhã.
Depois de indagar com o Vítor o que teria levado um tipo como o François, o
dono do Riad, a vir aqui parar, ele perguntou-lhe após o pequeno-almoço: depois
do divórcio, e aproveitando a experiência que tinha como facilitador de viagens
para esta zona, juntou umas coroas e resolveu emigrar. Recuperou (ou melhor,
reconstruiu) o Riad, obra que lhe tomou mais de três anos (um de prospecção e
mais de dois para a construção) e por aqui se estabeleceu montando um negócio no
qual presta um bom serviço.
Esta mescla entre dois mundos, o islâmico e o ocidental, que vamos
encontrando na rua é curiosa e até engraçada: o tradicional e o moderno a
deambularem lado a lado numa segurança que sinto como total. Quaisquer mitos em
que eu pudesse ter acreditado a este respeito, ao segundo dia já foram desfeitos.
As passadeiras de peões são nesta terra verdadeiras passadeiras. O trânsito
caótico é substituído por um tráfego regulado por uma ou outra regra ou
semáforo assim que saímos da Medina em direcção ao Jardim do Hotel Mamounia onde educadamente nos barraram
a entrada por virmos (eu e o Vitor) de chinelos! Para ver um jardim, caralho?!
Foi fora da Medina que me apercebi de como pode ser parcial a nossa impressão
de um lugar quando não expandimos a vista além do muro que delimita o nosso
raio de acção: a Medina é a Alfama-Mouraria de Marraquexe, a confusão onde os
carros mal têm lugar, os bairros onde os verdadeiros habitantes locais ainda
subsistem, os artesãos, carpinteiros, sapateiros à beira da rua, de porta
aberta, a lembrar as cidades medievais dos livros de História, o comércio
tradicional em maioria contra as grandes superfícies, a sujidade que até tem um
gostinho especial quando comparada com a “Alfama-casinha-de-bonecas” que
infectou Lisboa… os cheiros a incenso, especiarias, lixo, fruta ou bosta de burro
ou de cavalo pairam entre as mil e uma cores que dão vida às ruas delimitadas
pelo laranja que dá o nome “Red” a Marraquexe. E movermo-nos no meio deste
barulho tem um encanto que não encontramos fora da Medina, embora o cenário não
seja feio. Percebo agora que Marraquexe (e Marrocos) também possua uma dimensão
de “terra normal” com profissões normais a funcionar normalmente.
Apanhámos uma caleche para o Jardim Marjorelle
onde o Yves Saint Laurent viveu. A “posticidade” do parque não vale (na minha
opinião embora não fosse unânime) os 70 dirhams que pagámos para entrar mas não
é mau de todo. Creio que me arrependeria se não tivesse lá entrado pois nunca
saberia o que teria perdido e sabe bem atender às pretensões de todos (a minha
já foi atendida com a ida amanhã aos Montes Atlas).
Por outro lado, o jardim fica no trajecto que a caleche fez para nos mostrar a
cidade fora da muralha, a zona rica e um tanto agridoce, com mansões situadas
no meio de um calor e de uma região desenxabidos, um pouco descaracterizados
como são normalmente os redutos dos ricos nas terras dos pobres.
Uma característica une estes tipos: uns dentes de merda. O empregado do Cafe de France onde almoçámos ontem, impecavelmente
fardado, com um aprumo como eu nunca experimentei nos tempos em que vestia fato
e gravata, possuía um dente perdido no meio da cremalheira invisível com que
nos abria um sorriso que só para nós era desconsolador. Em Portugal ou em
Marrocos, os dentistas deveriam ser comparticipados.
Regressados à Medina, voltámos às insistentes ofertas de rua para massagens
ou haxixe (se não queremos uma, supõem que pretendemos a outra… WTF?!).
Voltamos a experienciar os "carrinhos de choque" nas vielas em torno da Jemaa El Fna, movimentos aleatórios a
lembrar os carros telecomandados da minha infância mas, ao contrário destes que
embatiam em tudo o que era móvel, rodapé ou pés de quem quer que estivesse no
caminho, estas motas apitam e seguem sem se tocarem, com uma perícia que chego
a invejar. Com os retrovisores recolhidos ou ao telemóvel; com um, dois ou três
passageiros, com ou sem motor, estranhamente estes tipos transmitem-me segurança:
parecem saber o que fazem na estrada, ao contrário do trânsito de Lisboa onde,
por mais pinturas, sinais, regras, semáforos ou radares que coloquem na via,
não há meio de eu confiar na condução do outro como aqui.
Hora do descanso antes de mergulhar no tanque.
O Afhid é uma espécie de caseiro aqui do Riad. Hoje aconselhou-nos alguns
restaurantes medianamente turísticos para comer a Pastilla ou Peixe (já cago Tajines
pela boca). É berbere e faz questão de o dizer reforçando a sua condição de
não-árabe. Vai passar férias a Portugal em breve mas fala numa viagem pela
Europa: tem amigos por lá espalhados.
Seguimos a sugestão dele e jantámos no Café
Kessabine Medina, no terraço com vista sobre a Jemaa El Fna que é mais espectacular à noite do que de dia (embora
não necessariamente mais bonita: quanto a isso, creio que as diferentes belezas
do dia e da noite não permitem comparações). Um dos pastéis que comi tinha
carne picada (ai o fantasma da caganeira
a começar a soprar-me ao ouvido).
Terminado o jantar fomos dar uma volta pela praça e resolvemos passar bem
pelo meio das bancas de comida… que puta de aventura! Se eu achava que os
comerciantes eram chatos, estes putos pareciam carraças a tentar placagens
consecutivas: mal nos livrávamos de um logo aparecia outro do nada para retomar
o discurso, os toques e a tagarelice espanhola-inglesa-francesa da qual eu
percebia tudo sem ouvir nada. Uma experiência e tanto.
Amanhã: Atlas!
Marraquexe e Caparide, 30 de Julho a 5 de Agosto de 2018
Comentários