A distracção, a azelhice e a estupidez dissolvem-se não raras vezes no mesmo caldo, confundindo aquele a quem tais características servem na perfeição, o qual deixa que a primeira esconda a segunda e que esta esbata a terceira.
Nunca fui um ás na cozinha. Não por me faltarem aptidões naturais pois se nunca me lancei seriamente nas lides culinárias não o posso saber. Não sei se me dedicasse condignamente à causa alcançaria algum sucesso mas a total falta de interesse por tachos, especiarias, tempo de cozedura, ponto de rebuçado, combinação de sabores, crepitação dos fritos e acender o forno nunca foi vencida por uma qualquer forma de curiosidade.
Das poucas vezes que tentei fritar algo em casa (quase sempre um ovo ou um hambúrguer), assustava-me com o azeite a efervescer na frigideira, sempre mal seca da pré-lavagem com que eu a preparava, chegando ao ponto de ir buscar uma sweat de manga comprida e colocar óculos escuros para me proteger de eventuais salpicos escaldantes que pudessem ser expelidos daquele vulcão instantâneo.
O forno de minha casa é outro vulcão adormecido já que apenas uma vez me aventurei a tentar acendê-lo. De cada vez que chegava o fósforo perto da saída do gás iniciava de imediato a contagem do tempo e se passassem mais de três ou quatro segundos sem que a chama tranquilizadora se espalhasse sob a base do tabuleiro, eu começava a imaginar a invisível nuvem de butano, propano ou o catano espalhar-se pela minha cozinha e cortava a saída do mesmo.
Estas limitações levaram-me a enveredar pela via mais fácil: utilizar os bicos do fogão (sem ser para fritar) ou não cozinhar de todo com lume. E foi com esta ideia em mente que dei inicio à minha carreira de pasteleiro uma vez que o meu bolo favorito, o bolo de bolacha, não precisa de lume para nada!
Era eu adolescente quando se deram os factos que descreverei de seguida e desde então não voltei a tentar fazer bolos (sequer). Ao contrário de José Severino, personagem de Herman José da minha infância/início de adolescência para quem “era mais bolos”, eu nem disso me posso vangloriar…
A primeira vez que tentei fazer o bolo de bolacha – e que supostamente era daqueles que “não tinha como sair mal” – fui ao livro de receitas da minha mãe onde ela anotava à mão as sinopses de cada sobremesa que para mim eram um autêntico filme! Esse livro ainda hoje existe em casa dela, uma verdadeira relíquia que resistiu aos “tutoriais internéticos” que nos vieram facilitar a vida retirando o gozo que outrora tínhamos (eu não) em consultar a página aberta de minuto a minuto de cada vez era necessário juntar, pesar ou cozer algo.
Recordo-me de dispor os poucos ingredientes em cima da mesa da cozinha e pensar que com tão pouca coisa não havia hipótese de correr mal. Bolacha Maria, manteiga, açúcar e café. Fácil! – pensei eu – Pus mãos à obra: cortei um naco de manteiga para o tabuleiro da balança que ficou imediatamente cagado de gordura e transferi a mesma para um recipiente. De seguida fiz o mesmo com o açúcar e, após descolar os últimos grãos que haviam ficado agarrados à manteiga da balança, comecei a misturar com uma colher de pau… a manteiga parecia um bloco de betão armado uma vez que pouca transformação em via às mexidas incessantes e crescentemente furiosas com que eu tentava misturar os dois ingredientes. Nunca até então a manteiga se me havia afigurado tão rija! Mal achei que a consistência do creme tinha atingido os “serviços mínimos”, e após ganhar uma dor de braços daquelas, passei à fase dois: molhar as bolachas em café e dispô-las camada a camada num prato, barrando o creme de manteiga entre cada uma.
Iniciado o processo, comecei a ver a primeira bolacha literalmente a dissolver-se no café antes de eu ter tempo de a retirar. Percebi que bastava mergulhar e tirar, uma espécie de “toca e foge” que fui apurando até completar a primeira camada.
Chegado o momento de cobrir o “rés-do-chão” do bolo com a manteiga açucarada, principio a barrar e atrás da manteiga começam a vir as bolachas agarradas, destruindo todo o trabalho aprendido. Naquele momento, a manteiga, o café, o açúcar e as bolachas passaram a ter tia, mãe, avó e até personalidade jurídica de modo a aplacar a minha raiva.
Na segunda tentativa metade do piso térreo foi à vida e ao fim de algumas iteradas lá enxerguei um método que me permitiu construir as pilhas de bolachas sem sobressaltos. Ficou com um aspecto de merda mas com um sabor maravilhoso! No final, quando levei a “surpresa” para a mesa a minha mãe disse-me que deveria ter colocado a manteiga durante um bocadinho no micro-ondas. Fiquei contente pois estava demonstrado que não fora a minha falta de jeito para a mistura a causadora daquele insucesso parcial mas a omissão presente no seu livro de receitas.
Da segunda vez que me lancei na construção do “castelo de bolacha” já não me apanharam desprevenido e, depois de pesada a manteiga (agora com uma folha de papel no tabuleiro da balança) e o açúcar, coloquei a primeira no micro-ondas. Passados o que me pareceram parcos segundos, espreito para dentro do aparelho e vejo a manteiga a borbulhar no recipiente…
É que nem cheguei a molhar a primeira bolacha no café: voltaram as bolachas e o açúcar para o pacote, o café para a máquina e a manteiga julgo que a lancei para a relva em frente à porta da cozinha acompanhada de um sem número de impropérios, desta vez dirigidos à manteiga e ao micro-ondas que me haviam boicotado a receita.
A minha mãe disse mais tarde que bastavam uns segundos para amolecer a manteiga. Jura?!
À terceira foi de vez!
A festa de anos do João e do Joel – gémeos e colegas de liceu – era nessa noite e coube-me levar uma sobremesa: bolo de bolacha!
A casa deles distava uns duzentos metros da minha o que me permitia levar o bolo na mão.
Tentei encontrar o meio-termo no respeitante à consistência da manteiga pois desta vez teria não só que fazer um bolo com um aspecto decente como teria que o conseguir aguentar num prato (o primeiro fora colocado num pirex de empadão para o conter dentro de limites aceitáveis).
Iniciei o processo e, para meu espanto, nem começou a correr mal. Contudo, à medida que os andares se foram sobrepondo e o bolo foi crescendo, a manteiga do início, que deveria aguentar as fundações do edifício, foi dando de si começando a migrar para o bordo do prato. Acelerei o processo para terminar o bolo com maior celeridade e consegui fazê-lo parecer mesmo um bolo! Num momento de inspiração, uma ideia brilhante surgiu-me quando a manteiga começava a escorrer para fora do prato: congelador!
E assim fiz. Coloquei o bolo no congelador e não quis o ver mais pois até sentia algum orgulho da obra que criara. No final, lembro-me de uma das minhas irmãs perguntar: Então? Hoje até nem foram muitos palavrões!
Na hora de sair para o jantar, abri a porta do congelador: parecia que estava a entrar nas Grutas de Santo António! As estalactites que pendiam dos limites do prato haviam cristalizado dando à minha obra um aspecto curioso-fantasmagórico. Retirei o bolo e, não sem pena, tive que arrancar as porções de “espuma” que enfeitavam o tronco comestível.
Saí de casa naquela noite de Novembro e, passado um terço de caminho com o bolo na mão, vejo a manteiga amolecer e aproximar-se perigosamente da margem do círculo que formava a base… o frio não era suficiente para impedir o “magma” de deslizar para a zona de perigo. Acelerei o passo o que não desacelerava em nada o processo que acontecia sobre as minhas mãos.
Com dois terços do caminho percorrido, não me restou alternativa senão recorrer ao método que me pareceu mais prático para evitar que o bolo se esvaísse totalmente em manteiga antes de eu chegar à casa dos aniversariantes: com o dedo, fui retirando a manteiga periférica recolocando-a nos orifícios entre os montículos de bolachas, agora mais descarnados e visíveis uma vez que parte do creme que os cobria lhes fugira.
A tripla operação de andar, equilibrar o bolo e conter o creme revelou-se difícil e senti necessidade de obter energia… amiúde, uma ou outra dedada de creme não voltava ao bolo mas viajava até à minha boca fornecendo-me o combustível necessário para conseguir terminar a viagem em condições.
Toquei à campainha e mal abriram a porta (e antes mesmo de endereçar os parabéns aos meus amigos) fui a correr para a cozinha (como se de um tipo com um ataque de caganeira a correr para o quarto-de-banho se tratasse) manifestando a urgência em colocar o bolo no congelador.
Assim que fechei a porta do mesmo, invadiu-me uma tranquilidade angelical. O trabalho já não era mais comigo mas com a máquina de frio que deveria conter as investidas do creme congelando-lhe a vontade de fugir ao bolo ao qual com tanto custo eu o tinha prendido.
…
Chegado o momento de dispor os doces na mesa, fui buscar a minha obra de modo a limpar as estalactites que desta vez, quer em número quer em dimensão, eram menos significativas.
Os vários elogios que ouvi deixaram-me orgulhoso mas não o suficiente para tentar fazer de novo um bolo de bolacha.
Também o provei (modéstia à parte, estava realmente bom) e lembro-me de me perguntarem como é que tinha feito e eu, dando uma de chef antes do tempo dos chefs estarem na moda (quem fazia doces na altura era o Goucha!!!) lá explicava realçando, qual especialista na matéria, as dificuldades da bolacha, do café e da manteiga.
O Marcos, um colega do nosso grupo, assim que provou o bolo sentenciou: Epá! Isto é uma bomba!
Mal sabia ele a história e a potência daquela “bomba”…
Caparide, 9 de Setembro de 2018
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