Passados quinze anos, a memória depurou as recordações do episódio que
ocorreu naquela tarde que haveria de mudar a minha vida para sempre. O que
ficou perdido na lembrança e que me apraz contar, se mais nenhum dos envolvidos
resolver recuar até àquele momento em que o clube dos cinco se tornou, ainda
que por breves horas, num bando de gatunos, ter-se-á passado como aqui é
contado.
Os dias anteriores haviam-se alinhado como a antecâmara de um acto em tudo
ilícito que, mais do que trazer até nós o medo de sermos descobertos, presenteou-nos
(pelo menos a mim) com o tremendo gozo de estarmos a cometer um crime, um crime
entre amigos, um crime cuja dissimulação me ofereceu um dos poucos ataques de
riso descontrolado que me lembro de ter tido na vida.
É possível que a ideia tenha surgido da minha cabeça… ou talvez tenha sido
o Pedro ou o Sandro… já não me recordo. Na altura eu era menino para ter uma
ideia daquelas e para ser até o mentor do crime, uma espécie de validador de
toda a empresa a que nos propúnhamos. Olhando hoje para trás, creio que o
projecto terá partido de um de nós. A Débora e o Leroy não pareciam ser pessoas
para tomar tal iniciativa, pelo menos em pensamento (porque na acção estiveram
connosco em toda a linha), ainda que o nome “Leroy” vá muito bem com o conceito
de “gatuno”. A Ana já havia partido e o ‘Jorge-chato-p’ra-caralho’ não alinhou
connosco (embora o tenhamos feito prometer que não abriria o bico…)
Julgo que quinze anos preenchem um período suficiente para a prescrição dos
eventos que aqui relatarei, pelo menos uma prescrição moral. Quanto à jurídica,
não me parece que algum procurador do Ministério Público esteja entediado a tal
ponto de se propor abrir um processo pelo ocorrido, mas se ainda assim o fizer,
basta alterar o rótulo desta entrada de ‘crónica’ para ‘ficção’ e o putativo cabrão
fica a chuchar no dedo ridículo que nos tentou apontar.
Estávamos no último dia da Gymnaestreda
e a maioria dos suíços, participantes no evento que ali haviam pernoitado, tinham
já abandonado a Escola Herculano de Carvalho nos Olivais (que é hoje a Escola
António Damásio – as mudanças de nome das ruas e instituições marcam impiedosamente
em mim as rugas da idade). Durante os sete dias do evento mais um ou dois que o
antecederam, foi ali a minha casa. O resto da quadrilha (então qualificada de ‘voluntários’)
foi chegando a conta-gotas. Tínhamos como função prestar o apoio logístico aos ginastas,
mais de cento e cinquenta repartidos por diversos grupos oriundos de diferentes
lugares da Suíça, servindo-lhes os pequenos-almoços e garantindo que sairiam da
escola antes das oito da manhã nos dias iniciais em que ainda decorriam exames
nacionais, ou auxiliar em qualquer outro assunto para que a sua estadia
decorresse sem sobressaltos. E foi nos pequenos-almoços que tudo começou, mais
concretamente no economato…
Desde tempos imemoriais que nas empresas, as áreas do economato, stocks, compras, etc… são o viveiro por excelência
do pequeno vigarista, do pé-rapado que pretende ser alguém à custa da pequena
trafulhice, do zé-merdas que anuncia orgulhosamente o atropelo à lei. E nós não
fomos excepção…
A tarde aproximava-se do final e a escola estava por nossa conta. Havia
sido uma semana de bastante calor e estávamos cansados e até com alguma pena em
vê-los partir: a convivência com os atletas levou-nos a conseguir assistir à
Gala FIG bem como à Gala da Suíça, ofertas simpaticamente concedidas pelos
nossos hóspedes mais simpáticos. Passeámos, levámos alguns (e algumas) à praia,
cantámos… creio que só não fizemos o óbvio
para as tenras idades entre os vinte e vinte e cinco anos que levávamos mas
éramos voluntários apesar de tudo e tínhamos o nosso código de conduta!
A arrumação das salas estava a cargo das senhoras da limpeza que só iniciariam
o trabalho no dia seguinte. Abria-se assim uma janela temporal entre as cinco
da tarde e as oito ou nove da noite, altura em que o Luís, o nosso responsável,
que passou o evento a ‘orientar’ as coisas passeando-se de escola em escola,
nos tinha dito que viriam recolher o que havia sobrado de comida. Restava-nos
acondicionar o que os suíços não haviam comido para que mais facilmente pudesse
ser carregado na carrinha que recolheria os bens.
É possível que tudo tenha começado com um ‘Isto é mesmo um desperdício!’ de um dos três cuja mente retorcida
se permitia a estas segundas derivadas do pensamento inocente. Olhávamos para
os quilos de bens que haviam sobejado… paletes e paletes de pacotinhos de leite
branco e achocolatado, garrafas de refrigerantes suficientes para saciar um
batalhão durante dias, iogurtes que nem que eu vivesse cento e cinquenta anos e
nada mais comesse na vida conseguiria dar conta quanto mais fazê-lo dentro do
prazo de validade, doses individuais de manteiga e doce que tanto jeito dariam
a um restaurante, pão em quantidade consonante e que nem a transformação em
torradas conseguiria impedir a formação de bolor e pacotes unitários de pãezinhos
de leite, tantos como eu nunca havia visto na vida! E depois havia a fruta, já
tocada, pisada, com os mosquitos a darem o exemplo para o aproveitamento que
também nós viríamos a fazer. E havia ainda copos, pratos e talheres de
plástico, ideais para as festas de aniversário que já não fazíamos naquela
idade, e guardanapos (dão sempre jeito)… não me recordo de mais nada.
‘E se levássemos algumas destas
coisas para casa?’ arriscou alguém que, se fui eu a dizê-lo, só o posso ter
feito em jeito de gozo para ter sempre uma via para fugir caso a sugestão não
fosse bem aceite. Mas foi, e o grupo de cinco formou-se naturalmente alimentado
por esta frase (e pelo produto do roubo que se avizinhava). Julgo ter sido nesse
momento que comecei a achar piada a toda a história e ao facto de irmos cometer
uma ilegalidade, com tempo marcado pois teríamos de realizar a acção antes que
os homens da recolha chegassem e não podíamos correr o risco de sermos
apanhados, sobretudo pelo Luís.
Telefonei-lhe a perguntar por onde é que ele andava e disse-me (não me recordo
se após o questionar sobre o tema ou não) que já não teria tempo de passar pela
escola senão aquando da recolha mais ao final do dia… Perfeito!
Faltava resolver o problema do transporte… eu não estava com o meu carro e
seria impensável andar com paletes de leite e dezenas de iogurtes pelo metro e
comboio da linha de Cascais! E eis que o elo seguinte do encadeamento deste
plano surgiu da cabeça do Leroy, o único da quadrilha que era meu amigo muito
antes de nos juntarmos naquela escola: ‘Eu
posso ir a casa buscar o carro do meu pai e levo isto para lá. Depois
combinamos e entrego-vos noutro dia.’ Grande! Enorme! Magistral Leroy! No
que tocava à poupança e à forretice, já naquele tempo o Leroy levava um sem
número de pós-docs de avanço sobre toda a humanidade e se lhe cheirava a borla,
ele lá ia desencantar uma ideia para a concretizar e saía-lhe com uma
naturalidade tal que teria de existir ali obra da genética.
‘Despacha-te porque temos menos de
três horas e ainda demoras quase hora e meia de transportes até casa!’ devo
ter-lhe dito eu e lá partiu o ‘condutor do plano’ enquanto nós, na mais
perfeita distribuição de tarefas e optimização de tempo, fomos colocando o
produto do furto junto da entrada, dividido em lotes de acordo com os gostos de
cada um de modo a que, mal o Leroy chegasse com a carrinha Peugeot do pai (que julgo conservar ainda hoje!) conseguíssemos
despachar os bens (para evitar que perecessem!).
E ele chegou passada mais de hora e meia para meu desespero que já estava a
ver o filme todo: nós a sermos apanhados a transportar torres de copos de
plástico e embalagens de guardanapos para um carro ‘não oficial’… Começámos de
imediato a carregar a Peugeot,
primeiro a bagageira o que me trouxe novo ataque de riso ao ponto de ter de
pousar as paletes de leite por me falhar a força… ‘Anda lá, caralho!’ dizia-me o Leroy o que só piorava as coisas. O
Sandro também levava ‘as suas coisas’ para o carro (a Débora e o Pedro, por
terem carro próprio no local, já estavam aviados pois havíamos carregado os
seus bens enquanto o Leroy tinha ido buscar o carro dele).
‘Mas eu nem gosto de leite branco!’
ripostava eu ao que alguém respondia algo do género ‘Carrega essa merda senão ainda somos apanhados!’. Em Agosto a luminosidade
vai-se tarde e aquela operação era arriscada para ser feita às claras. Mas só
era arriscada para mim que sabia estar a praticar um ‘gamanço’ porque visto de
fora, que mal havia num conjunto de jovens a encher um carro de iogurtes, sumos
e paletes de leite?
O Gonçalo tinha feito parte da segurança da escola durante o evento e,
sendo testemunha de toda a operação, pedia com os olhos para participar na
mesma. A meio do processo desviámos umas quantas paletes, talheres e outras
coisas que tais para o seu carro: afinal cabia tanto a cada um e o rapaz estava
com os olhinhos tão tristes por não lhe tocar nada… e para mais, fazíamo-nos parceiros
de crime da única testemunha que nos poderia incriminar (o Jorge já tinha ido
embora).
Lembro-me de rir que nem um perdido à medida que via o carro do Leroy
encher… o banco de trás, o chão de trás, o lugar do morto e o chão... eu ria-me
a imaginá-lo numa operação stop a ter que justificar a proveniência de tudo
aquilo sem guias!! Julgo que se irritou! Tivemos depois que acondicionar as
coisas de modo a que eu próprio pudesse caber no carro e lá conseguimos encaixar
tudo na mala e no banco traseiro… penso que não se conseguia ver para trás pelo
espelho!
Escondemos o carro de modo a que os homens da recolha não o vissem e mal chegaram,
entregámos-lhes algumas (poucas) paletes de leite e caixas de fruta (a mais
tocada) que havíamos deixado propositadamente para ‘não dar cana’.
E lá partimos no carro cheio de comida e gargalhadas (no meu intimo eu
gostava mesmo de encontrar um policia pelo caminho) até casa do Leroy onde
repartimos os bens pelos três: as coisas do Sandro ficaram num frigorífico
velho que o Leroy tinha no piso térreo da sua casa. Eu continuava adorar: apesar
de jovens, já não tínhamos idade nem necessidade daquilo o que só tornava a
coisa mais divertida!
Resultado do furto por pessoa: cento e vinte e tal iogurtes; duas paletes
de leite com chocolate; outras tantas de leite branco; uns cinquenta pães-de-leite;
pilhas de copos e pratos de plástico; fruta (eu apenas quis ficar com algumas
bananas); umas trinta doses de manteiga e outras de doce…
Andei a distribuir leite e iogurte pelos vizinhos o que não impediu que
tivesse andado a cagar pães-de-leite com doce, leite achocolatado e iogurtes
durante umas três semanas numa corrida contra o tempo para rentabilizar o
roubou o conseguir ingerir tudo dentro do prazo de validade!
O meu pai, sempre defensor da moral e dos bons costumes, de início
mostrou-se desagradado comigo (afinal acabava de descobr que o filho era um
ladrão), mas quando lhe disse que se calhar a manteiga e o pão eram demais, lá
foi capaz de dizer ‘Deixa estar: isso pode-se
aproveitar… a gente come.’ Pois é…
Na terça-feira seguinte o Leroy e eu encontrámo-nos com o Sandro à beira de
uma estrada próximo de sua casa para transferir a parte dele para o seu carro.
Sem este episódio a Gymnaestrada 2003
teria sido divertida? Claro que sim, mas não seria a mesma coisa! Até porque de
tudo o que se passou nessa semana, este foi dos poucos episódios que ficou
gravado na minha memória.
A operação foi de tal forma bem planeada que, à excepção do Leroy, não
voltei a ver os restantes membros da quadrilha nem encetámos qualquer contacto.
O que se passou na Herculano de Carvalho ficou na Herculano de Carvalho, e a
Herculano de Carvalho já não existe, tal como tudo aquilo que aqui foi relatado
alguma vez existiu. Até os nomes foram inventados (afinal, quem é que se chama
Leroy?!)
Caparide, 1 de Setembro de 2018
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