Comer fora não deveria ter muito que se lhe diga. Mas tem. Ou melhor: passou a ter.
Não sei se devido à crescente invasão de turistas e o impacto que isso teve na oferta gastronómica em Portugal, seja na tipologia, na qualidade, na quantidade e/ou nos preços; se devido à Cozinha estar pura e simplesmente na moda, seja através da proliferação de cursos de todas as formas e feitios, dos mais básicos aos mais singulares, ou se tem a ver com a praga televisiva de concursos e programas de culinária, cuja popularidade é directamente proporcional à capacidade para apresentar os pratos mais apaneleirados. A publicidade enche-nos de esquisitices que os supermercados e as lojas bio, gourmet, vegan ou sei lá mais o quê (desde que o nome não se pareça com um vocábulo português) tratam de propalar com vagas que chegam como as temporadas Primavera/Verão onde a alergia da moda vai variando consoante o interesse de quem a promove, tal como a do alimento saudável (que nunca ninguém na história da humanidade havia descoberto até à data). Do aloé-vera à soja passando pelo açaí, a medalha de ouro do salvador para o alimento sem mácula já premiou vários produtos “naturais”; no que toca a alergias, o glúten tornou-se no inimigo público gastronómico número, só para dar o exemplo actual.
Dito isto, devo dizer que, não gostando de um ou outro alimento pontual, mais tradicional ou mais “inovador”, gosto de todas as cozinhas… portuguesa, vegetariana, indiana, chinesa, japonesa, brasileira, tailandesa, italiana, sul-americana e até angolana. Gosto de peixe cru (sushi) e de carne crua (bife tártaro); gosto das ervas da moda, etc…
Só não gosto é de comer mal. É um defeito que ainda não consegui corrigir tal como também ainda não perdi o hábito de detestar ser enganado quando vou comer fora.
Serve o preâmbulo para falar de um restaurante que, situando-se bem perto de minha casa, não tenho por hábito frequentar: nos onze anos que levo em Caparide, não cheguei à dezena de visitas à Casa de Pasto “O Ralha”.
O lugar é o típico restaurante “tuga” com aquele ambiente que não se cria mas acontece naturalmente sem grandes explicações nos estabelecimentos onde nos sentimos bem.
Por fora ninguém dá nada por ele podendo qualquer um de nós passar à porta sem reparar que ali mora uma pequena preciosidade. Duas salas pequenas conseguem acomodar uns cinquenta esfomeados, arte de quem dispôs as mesas com a ciência de saber optimizar o espaço sem nunca ter frequentado a cadeira de Investigação Operacional: é o saber de experiência feito, tal como estou certo que acontece com a cozinheira, leiga a respeito dos ingredientes da moda mas nem por isso menos conhecedora da ciência que faz O Ralha aguentar-se há mais tempo do que eu naquela terra.
A decoração das salas inclui colecções de notas e moedas de todo o mundo emolduradas em quadros que acompanham as paredes e as refeições, colecções essas que foram passando de moda tal como a comida que ali se serve. Dando continuidade à decoração lusitana, o tecto de (pelo menos) uma das salas encontra-se forrado de cachecóis de clubes da bola, e se para uns tal adereço pode configurar a marca de um sítio… pindérico (como gosto desta palavra), para mim faz dele um espaço acolhedor.
As mesas encontram-se guarnecidas com uma garrafa de água e outra de vinho da casa com rótulo personalizado e tudo (sim porque n’O Ralha o vinho da casa não é servido num jarro qualquer). Depois vêm as azeitonas, o pão e o queijo (curado ou fresco) os quais, não marcando uma diferença substancial para o que é servido por esse país fora, contribui para cumprir os requisitos com que O Ralha mostra que quem lá entra não vai ao engano.
Claro que em cada uma das salas encontramos uma televisão e se estiver a decorrer um jogo de futebol, é certo que o mesmo está a ser transmitido em directo em ambos os espaços. Na última vez que lá fui entrou um casal de namorados – deviam andar na casa dos trinta – quando eu estava sentado a degustar as entradas enquanto esperava pelo jantar. Ele tinha pinta de surfista, enquanto ela dava ares de um snobismo que não nasceu consigo, como se o processo de transformação em betinha tivesse sido abortado restando simplesmente uma pessoa com ares de afectada. Eu ia olhando alternadamente para o jogo que passava na televisão e para o contraste entre a descontracção dele e o desconforto dela. A mulher senta-se numa mesa da sala onde eu estava enquanto o rapaz vai à casa de banho e ao mesmo tempo que pega no menú, pede ao empregado para mudar para a telenovela… Pára tudo! senti eu. Desliguei-me imediatamente do jogo na expectativa do que resultaria daquele pedido, preparando-me para protestar mal começassem a passar as imagens da mãe que escondeu a filha gémea e ceguinha durante vinte anos por esta ter ouvido a confissão de que ela havia assassinado o pai para poder ficar com o amante e a herança do marido (há mais de vinte e cinco anos que deixei de ver novelas). Mas o empregado teve o bom senso de a informar, de forma educada, que de momento não podia mudar de canal porque algumas pessoas estavam a ver o jogo mas que mal este terminasse mudaria. A senhora levantou-se e saiu ao mesmo tempo que o namorado chegava aliviado dos lavabos para, aparvalhado por não perceber o que se estava a passar, acompanhar a sua mais-que-tudo a outra freguesia. De vez em quando também eu falho o alvo nos restaurantes onde entro.
As meias doses n’O Ralha são meias doses à séria: em tamanho, em gosto e em preço o que significa que as duas primeiras características são altas e a terceira é reduzida. Não ocorre ali o que tantas vezes acontece em Lisboa e arredores, nos restaurantes que ainda resistem a apresentar meias doses no menu, em que um prato de treze euros tem a correspondente meia dose a dez!
N’O Ralha não encontramos “cascas de batata” nem “camas crocantes”, “puré de cenoura bebé” ou “explosão de chocolate com sugestão de frutos vermelhos”. Há febras e secretos, dourada e salmão grelhado, batatas e arroz, pudim, torta ou mousse. Comida, portanto.
Na Casa de Pasto, até as sobremesas têm meias doses! Eu sou guloso… da penúltima vez que lá entrei pedi uma dose de torta de laranja… serviram-me meia torta! Vi-me e desejei-me para enfiar aquilo tudo pela goela abaixo. Os últimos pedaços quase que tive de empurrar com o dedo para os conseguir acomodar no estômago… não satisfeito ainda fui dar um “beijinho” nos nove décimos de pudim que a minha mãe havia deixado. O Ralha conseguiu a proeza de me pôr enjoado com uma sobremesa, um feito que não está ao alcance de qualquer restaurante. Na vez seguinte que lá voltei, a última, fechei a refeição com uma porção de doce mais modesta.
O epíteto “Casa de Pasto” faz justiça ao espaço que encontramos ao entrar n’O Ralha. “Casa de Pasto” evoca de imediato a fartura da bela comida portuguesa, sem pretensões de parecer o que não é nem encarecer o que não merece nem metade do valor marcado. “Casa de Pasto” é um nome que impõe respeito e afasta os fãs da “Tasquinha”, do “Pátio”, do “Cantinho” do “Clube” ou de um estrangeirismo adequado, termos que, ao figurarem no nome de qualquer estabelecimento, cumprem a dupla função de encarecer o repasto e afastar quem lá entraria com a infeliz e inusitada ideia de… comer.
Para o fim deixo o segredo mais bem guardado daquela Casa de Pasto… o dono que nos recebe no átrio improvisado, de camisa aberta e cabelo comprido cortado num barbeiro que desistiu de se actualizar desde a última formação feita nos idos anos 80, de meia branca e sapato preto, e um bigode a evocar aqueles que decoravam as expressões dos jogadores do Benfica dos anos 70, Artur Jorge, João Alves, Humberto Coelho… até ao aperfeiçoamento final na década seguinte na pessoa de Fernando Chalana, esse bigode mítico da história do desporto nacional. O bigode do dono d'O Ralha esconde-lhe a boca e é por ele que percebemos que se está a rir pois a forma daquela cabeleira farfalhuda que lhe explode entre o nariz e o queixo inverte o sentido da sua curvatura de cada vez que o homem se ri. Os óculos que utiliza na ponta do nariz são manifestamente insuficientes para lhe conferir o ar distinto que, caso conseguisse atingir, desajustá-lo-ia do local de trabalho onde tão bem enquadrado se encontra. A sua voz mal se ouve mas as palavras não ambicionam ser ouvidas assim a simpatia e a comida que nos serve continuem alinhadas.
Numa das vezes que lá fui perguntei-lhe o que eram “lagartos de proco preto”. Ele inspirou e quase em surdina lá foi deixando sair uma ou outra palavra sussurrada… é assim como… é uma parte… é assim… mesmo bom! Perante o esclarecimento arrisquei e não me arrependi. Afinal, palavras para quê quando a comida é boa?
Este verdadeiro homem da pausa, coloca n'O Ralha a cereja no topo do bolo: é este tipo que corta a carne e arranja o peixe antes de os enviar para a cozinha. O gajo percebe da poda!
Lisboa, 26 de Setembro de 2018
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