A maior odisseia literária da minha vida – a leitura de Anna Karenina – terminou ontem e ao fim
de quase quatro meses com “o tijolo” debaixo do braço como se de um apêndice se
tratasse, posso finalmente perder os três quilos de peso acrescido que me
acompanhou durante este período (o desenvolvimento dos músculos do meu ombro e
braço direito foi mais efectivo do que em semanas a encher no ginásio).
A versão que li, low cost (1,4
cêntimos por página), tem uma tradução que, além de ser uma bela merda (há
frases que me parecem mal escritas), julgo ter sido feita a partir do espanhol
e não da versão original (algumas expressões levam-me a crer). Ainda assim,
vale a pena pela história e pelo facto de ter pago por ele um terço do que
pagaria se tivesse optado por uma versão de editora.
A história, sobejamente conhecida (excepto por mim, que nada sabia acerca
dela), é magnífica e com uma profundidade humana como poucas que li até hoje.
Tolstoi revela-se um mestre a aprofundar as motivações e os sentimentos que
conduzem as personagens. Posso agora ver uma qualquer versão cinematográfica
sem receio de spoilers como aconteceu
durante a leitura quando, ia eu com metade do “tijolo” desbastado, ao ouvir o podcast do programa A Páginas Tantas, Inês Pedrosa resolve resumir em cinco segundos a
história, com final e tudo! Era dia de trabalho e eu vinha de Lisboa a caminho
de casa… não encostei o carro mas julgo que alguns impropérios fizeram
ricochete nos vidros das portas dianteiras e no para-brisas… olhei para o livro
que tranquilamente viajava no lugar do
morto e perguntei: E agora, caralho?...
Ele não respondeu e eu tomei o seu silêncio por um amuo. Decidi não lhe fazer a
desfeita e prosseguir a leitura. Em boa hora o fiz. Tinha tido o cuidado de
deixar para depois de terminar o livro a audição dos dois programas sobre
Tolstoi mas não tive a perspicácia de adiar também o programa seguinte (sobre
Literatura no Cinema) por não me passar pela cabeça que iriam voltar a Tolstoi
pela terceira vez seguida… mandei um mail à Inês Pedrosa anteontem.
Em quatro meses acontece muita coisa… há quatro meses ainda eu não tinha ido
de férias no Verão: Anna Karenina foi
comigo até ao Algarve onde o li na praia; por causa dele conheci uma russa numa
esplanada em Tavira e uma espanhola no pequeno-almoço da pousada de juventude;
acompanhou-me diariamente para Lisboa onde todas as manhãs avançava umas
páginas no Zêzere, antes de entrar
para o trabalho; preencheu inúmeros momentos mortos à espera de algo ou de
alguém e viajou até Marrocos ou à Jordânia (o livro saiu tantas vezes da Europa
como eu!), sempre fora do trolley para
não pagar excesso de peso!
Perdi a conta ao número de vezes que caiu ao chão e, embora em muitas tenha
ameaçado desconjuntar-se, aguentou-se e nunca se desfez!
A velocidade de leitura decorreu em movimento acelerado: à medida que me
fui aproximando do fim, o interesse e a motivação ao ver encolher a largura do
conjunto das páginas em falta levou-me a querer ler mais e assim, a previsão
que em tempos temi de o arrastar até ao Natal (e constituir uma possível
tendinite) não se verificou.
Hei-de ver uma qualquer versão em filme mas parto com um preconceito: o de
que é difícil expor na tela o que Tolstoi descreveu. Há personagens tão ricas
que poucos são os realizadores, os argumentistas e até mesmo os actores capazes
de as representar em toda a sua complexidade.
E no fim, não querendo beliscar a qualidade da obra, devo confessar que a
Literatura que eu buscava e que tem vindo ao meu encontro não é esta…
claramente Julio Cortázar (de quem havia lido dois livros seguidos antes) faz,
nesta fase da vida, muito mais sentido, apesar da aparente falta sentido de que
os seus textos se revestem. Anna Karenina
é um bom livro mas, ainda que o reconheça enquanto tal, reconheço também que
não fará parte “dos meus livros”.
Seja como for, e apesar de não entrar para o meu Top-10, vale a pena ler Anna
Karenina, um verdadeiro tratado sobre a psicologia humana.
A seguir vou ler O Principezinho
(pela terceira vez, creio). Só para desanuviar e lembrar que as coisas sérias
também podem ser contadas com poucas palavras e igual ou maior mestria…
Caparide, 1 de Novembro de 2018
Comentários