Foi numa decisão de última hora que marquei o trajecto de dez quilómetros
no GPS e fui parar àquela praia. Tinha conseguido sair trabalho a meio da tarde
e passara a ponte sem problemas.
Com a antecipação habitual, percebi que naquela tarde o Vítor lutava contra
um artigo que teria de enviar daí a muito menos tempo do que aquele que ele
considerava desejável para o terminar em condições. Vi logo a oportunidade para
duas horas de leitura tranquila numa esplanada, antes de me encontrar com ele.
Estava na margem sul e não conhecia lugar algum. Decidi que a esplanada seria
junto à praia e procurei no mapa aquela, entre as que tinham bar de apoio, que
se encontrava mais próxima.
Foi assim que estacionei o carro a menos de cinco metros da esplanada junto
ao primeiro areal que encontrei, pois se aquele lugar me pareceu aprazível,
para quê percorrer todo o caminho?
Era a última tarde do ano e o sol segurava-se no horizonte aguentando o
frio lá em cima. Ainda não eram cinco da tarde quando me sentei em frente à
praia quase deserta, com Borges e um café sobre a mesa, casaco, óculos escuros
e um chapéu que não tapava o frio que me atacava as orelhas (o homem sentado na
mesa ao lado – na realidade estava sentado numa cadeira e não na mesa – fora mais
esperto: observava a mesma paisagem de gorro). Algumas mesas estavam tomadas
mas a calma e a ausência de gente marcavam o momento. A praia, como tantos
outros lugares, é tão mais bonita sem gente (um estádio de futebol ou uma sala
de espectáculos talvez sejam as excepções; uma mesa com amigos, um funeral ou
uma noite de Natal também). No entanto, se ninguém testemunhasse aquele
instante, ele nunca seria recordado. Existiria ainda assim? São precisas
pessoas para registar o que resta das coisas sem elas, separar o que observam daquilo
que a sua presença contamina. A palavra e a memória encarregam-se de pintar um
cenário mais idílico do que o que a realidade tantas vezes oferece.
Com o sol a descer sobre o mar lembrei-me da minha primeira professora de
espanhol, Ana Marquéz, valenciana radicada em Portugal havia alguns anos, que
me revelou, após eu lhe ter falado de São Pedro de Moel, o privilégio que é ver
o pôr-do-sol sobre o mar! Havia sido em São Pedro a primeira vez que observara
tal fenómeno (em Valência apenas via o nascer). Bastou um pequeno desvio para
ir a tempo de mais um pequeno privilégio que, ao tomamos por adquirido, nem
sempre o reconhecemos.
Ora lia umas frases de El hombre en
el umbral, ora olhava para o mar. Queria ler e queria ver aquele pequeno
espectáculo. Por fim, poisei o livro e centrei-me no sol, no mar e na praia.
Não pensei em grandes coisas nem fiz nenhum balanço do ano. Não desejei nada em
particular nem invoquei os quatro elementos ou qualquer espirito com o qual me
sentisse em comunhão. As coisas eram mais simples ali: ver o sol a pôr-se,
ouvir as ondas ao fundo, e guardar a última luz do ano que terminava. Tirei
fotografias e, coisa rara, filmei o momento. Vi que as fotos não faziam justiça
ao que eu via… e era verdade.
Como eu gostava de ter mais dinheiro para poder comprar tempo desta
qualidade, mas os ricos chateiam-me tanto (não por serem ricos mas por, ao
serem ricos, serem chatos)… um problema de difícil resolução: ter dinheiro sem
ser rico.
Foi o sol e veio o frio. O café há muito que já o era e a esplanada estava
fechada (preparavam o bar para a noite de fim de ano) mas tinham deixado ficar
quem lá estava. O sol não levou logo toda a luz e pude terminar o conto num
desconforto crescente, com as mãos e as orelhas a congelar progressivamente.
Terminei no momento em que o nariz se juntara à festa do gelo.
Fui para o carro e, quando me preparava para rodar a chave, duas
silhuetas levaram-me a sair para captar mais aquele relance de realidade.
Mais tarde, entre facebooks e whatsapps, pude constatar que o meu
momento havia sido tudo menos original: quanta gente não partilhara fotografias
do último pôr-do-sol do ano! E todas
mais bonitas do que as minhas, com as cores mais vivas e os elementos mais bem
enquadrados. Eu nunca tinha visto o sol a pôr-se no dia trinta e um de Dezembro.
Não deverá ter sido muito diferente do dia anterior ou do dia seguinte – hoje.
Contudo, aquele final de tarde foi e será sempre único: por mais vezes que o
sol se esconda, seja em que dia for, observado de um lugar especial, por trás
de um qualquer mar, nunca será igual àquele que eu vi. E não há palavras,
fotografias, vídeos ou mesmo memórias capazes de se aproximarem do que
aconteceu. Recriar? Nunca recriamos nada tal qual: criamos sim outra coisa.
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