Entre muitos traumas com que a vida e o tempo me vêm presenteando, o dos Centros Comerciais é um dos que já se confunde com quem sou.
O Natal era por
isso, mais do que o paraíso angelical da família, das luzes, dos coros e dos
sorrisos de Bom Natal, um período de
tormenta onde encaixar jantares e despachar mil e um presentes, ora porque os
amigos são muitos, ora porque recebemos uma prenda inusitada de quem não
esperávamos obrigando-nos a desenrascar uma bodega qualquer à pressa e fora de
prazo.
Fui deixando de “devolver”
ofertas só porque sim, tal como acabei com a maioria dos presentes. Não são
eles quem mede a intensidade de uma amizade ou a ternura de um grau de
parentesco.
Para a família
(esse conjunto que ainda recebe as minhas prendas), comecei, nos últimos anos, a
substituir de forma regular, um livro, um bilhete para um espectáculo, uma peça
de roupa, um perfume ou qualquer outra porcaria que, por mais de metade das
vezes eu comprava sem gosto, paciência ou vontade, por um jantar ou um almoço “em
condições, num restaurante “à maneira”, tentando proporcionar um momento “diferente”.
Quinta-feira,
20 de Dezembro de 2018
Eramos onze à mesa
n’A Pastorinha, um restaurante na
praia de Carcavelos cujo interior se revelou muito mais engraçado do que eu
pensava. Sempre que passava à porta, ora era para ir à praia, ora para comer na
Capricciosa, pizzaria paredes-meias
com A Pastorinha, ora para ir ao Fizz, discoteca que recentemente
encerrou e que fica por baixo do restaurante. Deste, só havia posto a vista em
cima do porteiro.
Foi lá que jantámos
na quinta-feira passada, o único dia em que estávamos todos disponíveis, devido
a Natais em família e partidas para Angola dos emigrantes.
O meu pai e a
Teresa, as minhas irmãs, o David e o Luís, os namorados (delas, leia-se) os
filhos do Luís e eu enchemos uma mesa que rapidamente começámos a esvaziar.
Não sei se foi o
melhor lugar onde já comi, mas não anda longe disso. A mesa disposta ao
comprido e a acústica da sala não ajudaram ao convívio (noutras ocasiões
aconteceu existir uma mesa redonda para criar logo outro ambiente, como disse
ao Luís) mas a qualidade das entradas, do serviço e sobretudo, da comida,
abafou estas imperfeições. A comida não era só boa: era muito boa… o lombo de
novilho que optei por comer parecia ser cortado com as facas Shogun cuja publicidade me maravilhava na
infância ao cortar toros de madeira ou redes em arame como se de manteiga se
tratasse. E uma vez que a opinião a propósito da qualidade da refeição foi unânime,
serve a mesma para atestar da satisfação com que saímos do restaurante.
Pedi a conta.
Olhei para o papel.
Engoli em seco.
Inspirei fundo.
Tentei lembrar-me,
durante o curto trajecto entre a mesa e o balcão de pagamento, de todas as
rezas, exercícios zen, mindfulness, visualizações criativas ou
pedidos ao universo, para que a carne que tão suavemente se havia dissolvido
perante o meu paladar não entrasse em erupção, qual tagine emporcalhada de um restaurante em Marraquexe.
Fiz um contrato com
o dono: vou passar os próximos meses a lavar pratos para ajudar a saldar a
minha dívida e repor na conta o saldo positivo que este maravilhoso repasto
tratou de assaltar.
Claro que tal não
corresponde à verdade embora, se tal proposta me tivesse sido feita, teria sido
alvo de séria ponderação. Contudo, ver a satisfação que todos sentiram no fim e
até a surpresa perante um gosto inesperado (esqueci-me de referir que a
sobremesa só teve cinco estrelas na conta, não no prato), valeu por todas as
prendas que deixei de comprar para ajudar a criar aquele momento. O restaurante
era perto, algo importante para todos, sobretudo para o meu pai que já não está
para ir para Lisboa à noite, a comida era boa e a companhia a melhor possível
(apesar de a mesa não ser redonda).
PS: Não eramos onze
mas doze à mesa, pois a Luísa, a minha sobrinha de três meses, apesar de já vir
jantada, foi a rainha da festa aguentando-se estoicamente ao meu lado, enquanto
degustávamos o jantar
Sábado, 22 de
Dezembro de 2018
Se para o meu pai a
distância é um aspecto a considerar, para a minha mãe e para o sr. Manuel, o
seu companheiro, é essencial. Por essa razão, hesitei muito antes de marcar o
almoço (para eles tinha que ser almoço pois à noite já não saem de casa) para
Fátima, a trinta quilómetros da Marinha Grande, onde vivem.
O Crispim era um velho conhecido. Havia lá ido jantar com o
pessoal do trabalho num sábado distante em que havíamos combinado uma corrida
de karts no kartódromo local.
Desta vez eu
conhecia o lugar e isso fez a diferença no momento da escolha pois tinha de ser
uma casa que agradasse a todos, mesmo a quem está habituado a não só não sair
da zona de conforto como a rejeitar liminarmente qualquer partícula de pó que
altere a rotina.
Chegámos cedo como
a minha mãe gosta e tratámos de dar conta das entradas que estavam na mesa. Num
registo diferente, O Crispim é um
restaurante cuja relação qualidade-preço é muito superior à dos
restaurantes-cagança da metrópole. O tamanho das doses fez o milagre da
multiplicação onde três alimentaram os cinco: a minha mãe e o sr. Manuel, eu, a
minha tia e a minha irmã Joana (esta leva sempre com dois presentes!). Na
realidade não eramos apenas cinco à mesa pois de cada vez que convivemos
sentam-se sempre connosco os que já partiram e que fizeram parte do círculo
próximo. Almoçámos assim com a minha avó e com a irmã, a minha tia avó (a quem
um dia, já ela ia para lá dos 80, resolvi contar a anedota do jacaré Jackson e
que metia a palavra “broche”, que ela conhecia como instrumento de vaidade e
não de prazer) e ainda com o meu avô, embora este só tenha aparecido no final
para o café (é que quando ele partiu eu tinha seis anos e, ainda que tenha
presente a sua figura, pouco privei com ele). Este sentimento nada tem de
saudoso ou de melancólico: é apenas uma sensação que me invade sempre que
visito esta terra e me sento à mesa.
A ginjinha no final
e a conta cinco estrelas no pós-final (como as cinco estrelas podem significar
uma coisa e o seu contrário…) deram a todos uma leveza em jeitos de satisfação.
E mesmo sabendo que não foi fácil para a minha mãe e para o sr. Manuel fazerem
o sacrifício de uma viagem tão longa por um simples almoço, creio que todos
gostaram e isso, mais do que tudo, é o que mais me apraz.
Marinha
Grande, 22 de Dezembro de 2018
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