O "Tal Canal"




- Viste?
- Vi na 6ª. No sábado não consegui.
- Epá no sábado eram três ao mesmo tempo. E todas boas!
- Foda-se… não deu: os meus pais ficaram a ver um filme até tarde ou o caralho…

Algo deste género poderia ter formado o preâmbulo da primeira conversa de 2ª de manhã no 3º ciclo ou no liceu.
O aparecimento da TV Cabo marcou a minha geração, em particular o tal canal cuja programação rodopiava 180º às 6as e sábados à meia-noite, qual feitiço da Cinderela – para os pequenos – ou da Mulher Falcão – para os românticos – transformando-se numa verdadeira experiência-limite da 7ª Arte: era de tal forma bem interpretado que parecia mesmo real. Eu, amante de cinema desde tenra idade, mal descobri o supracitado ciclo cinéfilo no “canal-maravilha”, tornei-me num espectador irregular, acrescentando aquele espaço filmográfico a outros que eu já então acompanhava: 5 Noites 5 Filmes e O Filme da Minha Vida no Canal 2 da RTP e Lotação Esgotada (às 4ªas) e Sessão da Noite (às 6as, mas antes do filme do tal canal) no Canal 1.
Durante o dia o tal canal chamava-se Fiesta (nome premonitório). Não me recordo do que passava durante as restantes 165 horas da semana (e creio que a esmagadora maioria da população masculina que tem hoje entre 30 e 40 anos é tão ignorante quanto eu a respeito de grelha do Fiesta). Falava-se espanhol, idioma que permanecia como a língua oficial dos filmes pós-meia-noite, para não destoar (ou quiçá para disfarçar?). Com o sucesso a alastrar, Portugal quis entrar na Fiesta e o canal foi substituído por um projecto Luso-Espanhol chamado Viver Vivir. Mas às 6as e sábados à noite ficava-se apenas pelo Vivir pois o saudosismo castelhano imperava e nós já não conseguíamos ver aquelas posições, malabarismos, contorcionismos e metralhadas ad eternum em português. Aliás, expressões como “Oh Si! Me gusta!” ou “Que coño!” ou simplesmente “Abre las piernas” constituíram os primeiros contactos que muitos de nós tivemos com o idioma de nuestros hermanos (isso e a canção do México86 e a série Verão Azul). Durante anos, sempre que ouvia falar castelhano, afloravam-me reminiscências daqueles filmes tão educativos, substitutos da educação sexual que nunca tivemos na escola.
No entanto, tal como os gatos não dão pelo nome, mantendo a constância comportamental o que quer que lhes chamemos, também o tal canal continha algo que permanecia inalterado: a sua posição na grelha era sempre a mesma, a 18ª. Não importava as vezes que mudava o nome, o logotipo ou o alinhamento do que passava durante o dia, desde que mantivessem intacta a programação de fim-de-semana depois do Vitinho: era sempre no canal 18. Os jovens da minha geração respondiam religiosamente à chamada, qual toque para a oração a hora tardia, e o termo “canal 18” tornou-se unívoco e universal, convertendo-se para todos nós em sinónimo, durante o resto das nossas vidas, do tal canal.
No livro de culto O Meu Pipi, o autor (compreensivelmente sob anonimato) publicou uma carta dirigida aos directores do canal Viver Vivir queixando-se da programação durante o dia e das dobragens durante a noite.
Encontrar as condições ideais para ver os filmes configurava muitas vezes um sistema impossível e indeterminado, uma alarvidade matemática mas que, por incrível que pareça, abria o seu espaço na realidade formada pelos eternos minutos da espera em que eu desesperava para que os meus pais se fossem deitar: começar a abrir a boca para fingir o sono quando as hormonas estavam em pulgas por todo o corpo; ir para a cama tentando lançar um efeito de contágio que raramente resultava, permanecendo eles na sala a ver uma merda qualquer; encostar a porta do quarto para melhor perceber quando é que eles desligavam a televisão, apagavam as luzes e iam para a cama… no meio disto tudo, não poucas vezes apareceu o sono a tentar boicotar a aquisição desta “bagagem cultural”. Numa ou noutra ocasião chegou a vencer-me, acordando eu pelas três da manhã para lançar de imediato uma reza de impropérios frustrados quando pouco tempo antes havia pedido aos anjos e santos e a vós irmãos que rogueis por mim a Deus Nosso Senhor, Ámen!
No entanto, quando conseguia entrar na sala escura e silenciosa (depois de dar uma margem de segurança para que os meus pais se deitassem e pudessem entrar no prólogo do sono), era a antevisão da alegria, a confirmação de que quem espera sempre alcança, a satisfação de poder comprovar que a estratégia surtira efeito!
Ligava a televisão já com o dedo premido com uma força sobre-humana no sinal menos do volume, como se ao carregar com maior vigor o som do aparelho baixasse mais depressa. Quantas noites não transpirei quando o aparelho soltava uma berraria histérica de um anúncio a um aspirador borbulhante, um tira-nódoas milagroso, um spray que fazia crescer cabelo ou às facas mais afiadas do que a língua do Carlos Castro: as famosas televendas que davam depois do fecho da emissão. A sala não tinha porta por isso o som propagava-se pelo corredor até ao quarto onde os meus velhos dormiam. Resolvido o problema do som (o mais urgente pois era aquele que com maior facilidade poderia acordar os meus pais), colocava-se a questão do brilho… numa sala escura, o brilho de um ecrã de televisão faz-se mais potente do que o holofote da cadeira do dentista! Lá tinha que regular a luminosidade para que os movimentos da imagem não fizessem demasiadas cócegas na parede do corredor levando algum dos progenitores a vir ver o que é que se estava a passar.
Quando finalmente me conseguia sentar e ver o filme, em vez de relaxar e desfrutar da película, passava toda a trama num stress constante, sempre “com um olho no burro e outro no cigano”, atento a cada barulhinho que a noite deixava escapar, não fosse alguém acordar e apanhar-me a ver um filme às escuras, com a TV quase sem brilho e o volume num espanhol sussurrado.
E eis senão quando os meus pais me ofereceram a solução sem o saberem: compraram uma televisão para a cozinha! E a cozinha tinha porta!
A qualidade das sessões cinematográficas ganhou então uma melhoria exponencial: a cozinha converteu-se numa verdadeira sala de projecção! Como me pareciam diferentes aqueles filmes com o seu brilho natural… e como o espanhol se tornou na mais sensual junção de vocábulos da minha adolescência!
Por essa altura o meu pai ofereceu-me uns auscultadores da alta qualidade: eram da Sennheiser e por aqueles fios ainda passaram umas quantas cambalhotas em espanhol antes de eu desistir da ideia pois retirava-me a possibilidade de detectar a tempo a “aproximação do inimigo” à cozinha, impedindo que me fingisse interessadíssimo, após uma atabalhoada mudança de canal, num qualquer anúncio a um aparelho com rolamentos para friccionar o corpo e acabar de vez com o reumatismo! Com os auscultadores sentia-me como um gato a quem cortaram os bigodes: indefeso.
E quando o futuro parecia promissor e as 6as e sábados à noite convergiam para uma expectativa radiosa, uma nova ameaça surgiu na equação: o Sexy Hot, um canal pornográfico 24 horas por dia (!!??) surgiu na grelha da TV por cabo! E pago à parte ainda por cima, o que significava que, a avaliar pelo que os chulos haviam feito ao futebol com o aparecimento da SportTV, a emissão nocturna do tal canal estava ameaçada.
Mas (felizmente) foi falso alarme e o ciclo de cinema permaneceu inalterado. Por ironia do destino, foi mais ou menos por essa altura que o meu interesse pela programação foi substituído por outros motivos. E acabei por nunca ver um filme do canal 18 completamente descansado.
Pouco depois apareceu a internet e imagino que as audiências do tal canal devam ter caído a pique. Contudo, continuei a ver as 5 Noites 5 Filmes. Afinal: cinema é cinema e na Arte há espaço para as mais díspares manifestações do génio humano!

Caparide, 13 e 14 de Março de 2019

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