Ler: efeitos colaterais (Parte I – Fratelli d’Italia)



Há muito que o livro chamava por mim das prateleiras das livrarias por onde eu passeava a vontade obsessiva de manusear e adquirir exemplares como quem compra um sonho futuro. Contudo, a proibição com que eu matara quaisquer intenções, por mais envergonhadas que se afigurassem, de levar para casa novas obras antes de ler pelo menos cinco que já morassem nas minhas estantes, fazia dos meus encontros com aquele livro os preliminares com que um pretendente corteja uma rapariga cujo interesse não saiu ainda de esfera platónica.
No último Natal, o meu pai ofereceu-me o “fruto proibido”: vales-oferta totalizando um montante suficiente para adquirir três ou quatro livros… (que chato!). Renegociei comigo mesmo os termos do contrato a que me autolimitara: compraria os livros (acabariam por ser quatro) e o número de obras a ler antes de nova aquisição subiria para nove.
E foi assim que encontrei forma de levar para casa Um, Ninguém e Cem Mil de Luigi Pirandello. Após vinte páginas (com os riscos inerentes àqueles que a apreciação antecipada de qualquer obra comporta), estou a adorar. Foi por isso que o levei ontem para o café que havia combinado com a Filipa na Cinemateca: para lho mostrar. Iniciava-se a Festa do Cinema Italiano e ela quis tentar a sorte com alguma desistência para a antestreia do documentário Santiago, Itália de Nanni Moretti. Eu só queria tomar um café.
Pedimos e sentámo-nos. Falámos do livro e dos filmes que eventualmente veríamos no festival. A dada altura, duas senhoras, estrangeiras pela pronúncia, perguntaram se podiam sentar-se a nossa mesa (o restaurante da Cinemateca – sugestivamente denominado de 39 Degraus – estava cheio). Acedemos e eu levantei-me para ir apressar e buscar o pedido ao balcão que tardava em estar pronto. Dez minutos depois, ao regressar à mesa, a Filipa diz-me que elas eram italianas e haviam perguntado pelo livro, ao que ela tinha respondido que era eu quem o estava a ler. Aproveitei para falar sobre literatura e (sobretudo) cinema italiano: trabalhavam ambas no Instituto Italiano (uma era directora, a outra estava em Portugal há vinte e cinco anos) e começámos a conversar, ainda que não de uma forma muito fluida, sobre o tema. Dissemos que era uma pena que a Festa do Cinema Italiano não tivesse mais retrospectivas ao que ambas ripostaram de imediato, como que encarando o reparo numa ofensa pessoal, que havia que mostrar o que se fazia actualmente em Itália (só mais tarde, quando conduzia para casa debaixo de forte chuva, me apercebi de que talvez o Instituto Italiano pudesse ter alguma coisa a ver com a programação do Festival: nesse caso, talvez tenhamos sido um bocadinho indelicados, mas pelo menos fomos sinceros).
Eis que chega um italiano de boina, artista e jornalista, com opiniões de macho e de esquerda, galã e conversador: um italiano, portanto. Tirando a boina, a restante caracterização do homem apanhara-a eu (e interpretara-a à minha maneira) do Esplendor de Portugal, programa de rádio cujo podcast oiço semanalmente e onde Rui Pêgo conversa sobre os temas do momento com três correspondentes estrangeiros em Portugal: Jair Rattner do Brasil, Virginia López de Espanha e Ronaldo Bonacchi de Itália. Fora este o personagem que acabara de chegar perguntando à Filipa, após trocar algumas palavras com as nossas companheiras de ocasião, se não a conhecia de algum lado. Ela respondeu-lhe que não mas que eu sim, pelo que completei “da rádio”, e falámos um pouco sobre o programa e da perspetiva de, à semelhança do Governo Sombra, este começar a ser transmitido em televisão (ele considerava isso uma “traição” à rádio), do Governo Sombra e d’O Eixo do Mal. Todos haviam vindo para o filme do Moretti e a Filipa voltou à carga dirigindo-se à recepção para tentar uma vez mais apanhar a sobra de uma qualquer desistência. Conseguiu, voltando com o bilhete de entrada e a felicidade no rosto. Trocámos mais algumas impressões com as italianas, sobretudo com a que era “portuguesa há vinte e cinco anos”, marcando no jornal do Festival as obras que ela nos aconselhou.
Com a aproximação das nove e meia, eles dirigiram-se para a sala, no piso de baixo, e eu fui para o carro. O hall havia sido inundado por portugueses e italianos, uns mais conhecidos do que outros (conheci uma ou outra cara da televisão – mas não sei os nomes dos actores ou das actrizes – e o Rui Pedro Tendinha, presença habitual nestas lides). Há algum tempo que não marcava presença em festivais de cinema mas este ano venho à Festa Italiana ver quatro filmes. E que saudades eu tinha destes ambientes!
E foi assim que um cheque oferta me levou a Pirandello; que um podcast me levou a Bonacchi; que um café com a Filipa me levou à Cinemateca; que Pirandello estabeleceu a ponte para o Instituto Italiano e suas representantes; e que estas trouxeram à nossa presença o simpático Bonacchi e a sua boina preta.

Lisboa, 5 de Abril de 2019

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