Se amanhã nos encontrássemos, o que te diria?



Provavelmente nada.
Deixaria passar mais um dia sem te ligar nem procuraria qualquer foto que eventualmente tivesses partilhado. Haveria sempre o dia seguinte para uma mensagem, um encontro a que ultimamente sempre te escusavas, um comentário na rede social, a tua cada vez mais árida de movimento. Haveria sempre mais um dia para te vermos num piquenique, num jantar de aniversário, de Natal, de Santo António ou qualquer outro pretexto para nos juntarmos. Haveria sempre mais um dia… e o problema é mesmo esse cabrão desse tempo verbal: “haveria”. Até ao dia, e esse dia foi ontem, infelizmente para todos, mas sobretudo para ti.
Não sei se devo utilizar essa palavra – infelizmente – quando foi precisamente na ausência de felicidade que partiste, talvez a encontres em algum lugar que nenhum de nós, que continua do lado de cá, a lutar por fazer esta merda valer a pena, conhece. Provavelmente encontraste-a e estás a rir-te neste momento enquanto nós, tristes por não mais poder contar com a tua presença, que rareava nos últimos tempos, desejamos com uma força tão grande como impotente, que aqui estivesses. Gosto de imaginar que te estás a rir de nós… ou para nós, agora. O riso que não ousaste gastar em vida, esbanja-lo agora pelo tempo infinito que tens pela frente.
Tenho-me lembrado muitas vezes de ti mas a verdade é que nada fiz para chamar a tua atenção. E hoje, não houve um segundo em que não pensasse em ti: quando acordei tinha dezasseis mensagens e pensei: ou há merda ou há paródia. A última mensagem: “Nem sei o que dizer… L”. Há merda! E vim para Lisboa antes de abrir a conversa para conseguir conduzir tranquilamente, sem suspeitar, em momento algum, que o que iria ler estava muito para lá da “merda” que eu pensava.
Nada disto me faz sentido. Não fez de manhã quando, no café, não consegui abrir o livro para ler uma única linha; não fez durante o dia onde o trabalho rendeu muito menos do que deveria; não fez ao almoço, que passei a ver fotografias tuas no facebook… e como a Salomé tinha razão: não há uma única onde apareças a rir meu cabrão! Uma única! Podias ao menos deixar-nos um sorriso… procurei melhor e descobri um sorriso teu… quando tinhas uns oito ou dez anos, talvez. Importei-a de imediato antes que fechem a tua conta e com ela, o único sorriso que te conseguimos ver. Tu que até tinhas um sentido de humor tão apurado…
Lembro-me amiúde de duas observações feitas a teu respeito, uma delas por ti próprio. Não as poderei reproduzir aqui sob pena de ser mal interpretado, mas hoje essas duas frases não me largaram.
Há seis ou sete meses, soube que irias finalmente procurar ajuda: admirei tanto a tua coragem, acredita. Tinhas dado o primeiro passo. Mais tarde, pelo Natal, a Inês disse-me que tinhas recuado e nada tinha acontecido. As coisas ficavam difíceis para ti enquanto nós trocávamos presentes.
Na noite anterior à da tua partida, celebrávamos a vida em casa da Teresa: aniversários e nascimentos… a vida que te deixou em nós, órfãos da tua amizade, por muito pouco importante que te considerasses. Custa-me tanto aceitar isto mas é tão irreversível que não resta outra hipótese. Admiro a tua coragem. Não te posso julgar… quem somos nós para o fazer? E como te respeito… posso não compreender que tenhas seguido pela única via que não permite inversão de marcha, mas repito: admiro a tua coragem, Joãozinho.
“Joãozinho”… é sintomático que tantas vezes te tenhamos tratado por “Joãozinho”. É certo que é carinhoso, mas creio que esconde uma certa condescendência, um jeito paternal ou maternal que muitos de nós tinham para contigo, o que nem sempre ajuda apesar de ninguém o ter feito por mal. Se há certezas que tenho nesta puta desta história, é que tu eras (este tempo verbal mata-me) daquelas pessoas de quem toda a gente gostava.
Hoje foi um dia tão estúpido. Pela primeira vez em muito tempo, estive no escritório com o telemóvel com som à espera de novidades; estranho que só estejamos alerta quando já nada há a fazer. E esforcei-me por recordar uma expressão tua alegre, uma gargalhada, qualquer coisa que me mostrasse que lá para trás, em algum momento foste feliz. Não consegui, mas eu apenas te conheço há uns cinco anos… talvez mais se juntarmos os dois ou três eventos anuais em que nos cruzávamos antes disso; os outros que te conhecem há mais tempo, decerto se lembrarão de dias felizes, espero.
Sinto que viveste sem a mínima consciência da importância que tinhas para os que te rodeavam, e da importância que poderias vir a ter se acreditasses um bocadinho. É que não é favor nenhum que te faço quando digo que eras um gajo porreiro: eras mesmo um tipo bom. Devia ter-te dito isto mais cedo…
Com certeza que a tua família e os amigos mais próximos sentirão muito mais a tua falta do que eu; eu “apenas” fiquei impressionado, triste, chocado com a tua partida repentina, mas para eles que deveriam privar muito mais contigo, a saudade deve apertar muito mais.
Quanto a mim, posso-te garantir que ainda vais ficar por cá muito tempo. Não que isso agora te importe, mas acredita que vens comigo. E se por acaso te estiveres a rir destas baboseiras aí desse lado meu cabrão, então parabéns: foste mais lúcido do que todos nós, que neste momento só sabemos sentir a tua falta.
Continuas a rir-te? Pelo menos podias deixar-nos ouvir um bocadinho do teu riso. Se esta vida era demasiado sufocante para que te pudesses rir como querias, espero que, de onde quer que nos estejas a ver, tenhas encontrado o riso que te faltou (a ti e a nós) aqui deste lado.

O único sorriso que te consegui arrancar

 Caparide, 29 de Abril de 2019

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