Terminal 2 do Aeroporto Adolfo Suarez: o palco da "tertúlia" |
Passeávamos ontem
de manhã em Madrid por El Rastro quando quebrei (uma vez mais) a
minha promessa e comprei um livro. A culpa foi da Laura que me aconselhou Soldados de Salamina de Javier Cercas.
Critérios para a consumação da compra:
- Foi-me aconselhado por uma amiga cujo gosto me agrada;
- Em algum momento da sua descrição ela mencionou a Guerra Civil de Espanha;
- Custava dois euros;
- Possuía aquele cheirinho a livro usado, cujas páginas já tinham servido “outro alguém”.
Desta vez contudo,
o incumprimento não conta: o livro é em espanhol e a sua compra constituiu uma “gracinha”
pelo que me continuam a faltar dois livros e meio para eu desbloquear a
carteira literária (nesta viagem, os atrasos dos voos – para lá e para cá – possibilitaram-me
um bom avanço em Um, Ninguém e Cem Mil:
ontem à noite ao aterrar em Lisboa ia a meio e continuo a gostar).
E foi depois de uns
Foda-se(s) bem audíveis junto à porta
64 do Terminal 2 do Aeroporto Adolfo Suarez – Barajas, quando vi que o voo que
me traria de volta a Lisboa estava vinte e cinco minutos atrasado (ou seja,
cinquenta), que fui comprar dois Milkas
XXL. Sentei-me e, antevendo uma fome que ainda não tinha, devorei mais de meio
chocolate. As mãos pareciam daqueles pega-monstros da infância e a viscosidade
não me saía dos dedos. Como não podia pegar no livro naquele estado e chupar os
dedos não estava a surtir o efeito desejado, fui comprar uma garrafa de água
para os lavar (e também porque o Milka
de “caramelo de amendoim” – bom p’ra caralho! – me deixou com uma sede
daquelas) pedindo ao homem que entretanto se sentara ao meu lado para olhar
pela minha mochila e casaco.
Regressei com os
dedos prontos para folhear as páginas do livro de Pirandello onde o personagem
principal, Vitangelo Moscarda, começava a enlouquecer. Tiro o livro e na minha
cabeça ressoa uma voz: Pirandello? Não é
comum encontrar alguém a ler Pirandello… fiz que não era nada comigo,
imaginando de um modo algo apatetado que nunca antes tinha ouvido o meu próprio
pensamento com tanta nitidez; … Pirandello
lia-se há muitos anos… ok: agora não podia mais ignorar. Continuar a fingir
que era uma voz dentro da minha cabeça já nem a mim próprio me convencia e
virei-me para o lado pois o som saía da boca do homem que tinha velado o livro
sem o saber.
O ar ilustre,
marcado pela barba aparada, óculos de massa amarelos, uma idade onde a distinção
já não se força mas emana naturalmente e um tom de voz suave mas muito seguro daquilo
que está a dizer, levaram-me a tentar explorar o máximo que conseguisse do
conhecimento literário que eu tinha a certeza de ter ali sentado ao meu lado.
Perguntou-me se eu
estava ligado ao teatro; Não estou, mas por vezes gosto de arriscar autores que
me são desconhecidos, e estava a adorar Um,
Ninguém e Cem Mil; Repetiu-me depois que se lia bastante há uns anos e que Pirandello tinha muita obra publicada em
Portugal; Disse-lhe que, quando era mais novo, costumava ir à estante do
meu pai “sacar” um livro de vez em quando, tendo sido essa uma das vias por
onde entrei na Literatura, sobretudo no séc. XX, e falei-lhe nos
sul-americanos, de García Marquéz e sobretudo de Cortázar; Ninguém da minha geração passava a juventude sem ler Cortázar. É muito
bom. O García Marqués é bom mas… pronto. Mas se gosta de Realismo Mágico deve
ler o «Pedro Páramo» de Juan Rulfo; Já tinha tentado mas não tinha
“conseguido entrar”. Com Cortázar sim: lê-lo é como se me visse naquelas
frases, e ele consegue extrair tanto das palavras, ter aquele domínio sobre a
língua. Nunca gostei de nenhum livro que dei na escola no momento em que (não)
o estudei: detestei a Aparição da
primeira vez que o li e dois anos mais tarde, sentindo que tinham ficado contas
por ajustar, reli-o… e amei. Mas não conheço muitos livros portugueses do séc.
XX; Sabe, a Literatura Portuguesa do séc.
XX tem apenas cinco ou seis livros bons, sobressaem sempre os mesmos: «A Sibila»
da Agustina, «Nome de Guerra» de Almada Negreiros, «Mau Tempo no Canal» de
Vitorino Nemésio. Já leu «Mau Tempo no Canal»?; Eu tinha começado a lê-lo
mas, uma vez mais, foi daqueles casos em que senti logo não ser o momento para
iniciarmos a “relação” e pu-lo de parte. De qualquer forma, é um dos que
seguramente hei-de ler; E Herberto
Hélder? Já leu?; Eu e a poesia temos uma relação difícil: julgo que nunca
me sentirei preparado para escrever poesia… quer dizer, é fácil rimar “João”
com “Coração” mas isso não é poesia; Experimente
a prosa dele: «Os Passos em Volta»; Neste ponto da conversa pedi-lhe para
esperar um pouco de modo a conseguir apontar todas aquelas referências. Esboçou
um sorriso insinuando que não era necessário mas retorqui de imediato que me
iria esquecer de tudo; «Se eu quisesse
enlouquecia» escreveu ele nesse livro. Naquela altura, alguém escrever algo
assim não era normal: um tipo não enlouquece porque quer a não ser…;
(fiquei apaixonado por aquela frase: “Se eu quisesse enlouquecia”. Eu que
estava a ler um ensaio sobre a loucura, se o modo como nos vemos é o mesmo como
os outros nos vêm e aquele que vemos no outro é diferente daquele que os outros
vêm nele ou até como o próprio se vê a si mesmo… “se eu quisesse enlouquecia”);
Falou-me da Colecção Sistema Solar,
do Manuel Rosa e do tradutor Aníbal Fernandes, da selecção de bons autores que
publicam por pouco dinheiro, etc… a dada altura pergunta à mulher o nome de uma
outra colecção ou editora (não me lembro), respondendo-lhe ela de imediato e
sem vacilar (pelo menos nos gostos que partilhavam estavam alinhados); Referi
então um nome que havia passado de moda, Stefan Zweig, de quem o meu pai tem
muitos livros na garagem, daqueles cuja edição é toda em papel, até a capa (um
“à parte” que não entrou na conversa: o meu avô era um grande fã de Stefan
Zweig – não sei se lhe devo chamar avô ou simplesmente o “pai do meu pai” pois
ele morreu vinte e oito anos de eu nascer); O
Zweig era um grande biógrafo: experimente ler a biografia de Maria Antonieta;
(Está lá em casa!) Detive-me então nos europeus, Europa Central, Suíça-Alemanha-Áustria:
gosto daquele pessimismo, do negativismo com que descodificam a realidade, e
falei-lhe de Hesse e de Walser; Walser só
foi descoberto em Portugal nos últimos vinte anos: é muito bom; Li o “Jakob
Von Gunten” recentemente, um pouco nesta onda do “vou arriscar” acompanhado por
um feeling que me tem levado a
acertar mais vezes do que a falhar, embora por vezes “leve barretes”. Gosto
também do Thomas Bernhard: foi ele que me levou a ouvir Glenn Gould; «Variações de Goldberg». Bernhard é genial: mais
actual mas muito marcante; Gosto muito da Literatura dessa região da
primeira metade do século; Conhece Céline?
Há dois livros dele que são obrigatórios: «Viagem ao Fim da Noite» e «Morte a
Crédito»; (Apontei) e disse-lhe que já tinha ouvido falar dele: que “não se
tinha portado muito bem” na 2ª Guerra Mundial; De facto, ele apoiou a invasão da França mas nunca denunciou ninguém: e
sabia onde estavam os resistentes! Quando regressou da Dinamarca – ele já sabia
que não iria ser preso – vinha com a sua pose altiva e, de forma provocadora,
com o gato a espreitar de dentro do sobretudo. O gato Bébert atravessa toda a obra
de Céline…; (comecei a ficar para trás na conversa… Gato Bébert?!) Procurei
na net o único livro de Céline de que havia ouvido falar “Norte”; Comece pelos outros; O Lobo Antunes
falava muito do Céline…; Ah sim, e o
Céline escreveu-lhe uma carta que o Lobo Antunes trazia sempre no bolso: o
Céline nunca escrevia a ninguém… aquele Lobo Antunes também… O que é que
estudou, se não é indiscrição?; Estudei Matemática, mas o que gosto mesmo é
de Cinema, Literatura e Escrita. Também gosto de desporto mas as três artes é
que me preenchem. Fui para Matemática porque quando estudava detestava as
humanidades; Conhece aquele matemático
francês que nos últimos anos está muito na moda?; Eu não fazia um “boi “ de
ideia quem era o matemático francês… (definitivamente, estava a perder o
comboio). As pessoas começaram a aproximar-se da porta de embarque e, com pena
minha, disse-lhe que iria para a fila; Ainda
falta tempo, podemos esperar um pouco…; Mas eu estava decidido: apertámos
as mãos e despedimo-nos; Levo a mala
cheia de livros: se estes tipos me abrem a mala ainda pensam que sou algum
contrabandista;
Nem o nome lhe
perguntei. E não foi tanto por indelicadeza mas por esquecimento. Por um lado
gostaria de ver como evoluiria uma possível relação caso tivéssemos trocado contactos:
se a cultura sustentaria as nossas conversas ou se estas se esgotariam em
breve… gostei daqueles trinta minutos, mas a total ausência de continuidade tem
também o seu “quê” de literário (não foi por isso que não lhe pedi o número de
telefone ou o endereço de email): um episódio que começa e termina no Aeroporto
Adolfo Suarez; um encontro que me abriu (ou abrirá) as portas para muitos
outros “encontros” como Mau Tempo No
Canal ou Stefan Zweig (de quem nunca li um livro) por exemplo.
O saldo de Um, Ninguém e Cem Mil está a superar tudo,
possibilitando-me mais contactos nestes dias do que qualquer outro livro que eu
tenha lido. Um tratado sobre a impossibilidade de vivermos sem saber quem
somos… e de saber também… quem sabe a loucura não será mesmo o caminho da
felicidade? Se eu quisesse enlouquecia…
Que pena eu já ir a
meio do livro…
PS: O matemático
francês chama-se Cédric Villani; o meu “amigo” do aeroporto permanecerá
eternamente sem nome.
Caparide,
8 de Abril de 2019
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