A dimensão desumana
de alguns museus encontra a esmagadora parcela da sua justificação na
necessidade de congregar a diversidade de obras em exposição, evitando que se
espalhem por dezenas de espaços em diferentes ou numa mesma cidade, tornando
inviável visitá-los todos. Ao juntar um número estratosférico de motivos, num
espaço estratosférico, capaz de albergar um número estratosférico de visitantes
que permanecem no interior durante uma parte estratosférica do dia, a
inviabilidade de visitar todo o espólio com a devida atenção permanece
inalterada. Estamos assim perante um problema sem resolução.
Da primeira vez que,
em Londres, entrei no Museu da Ciência, temi nunca mais de lá sair. Oito horas!
Oito horas da vida de um miúdo de treze ou catorze anos! Fiquei traumatizado! É
certo que os meus pais e as minhas irmãs me acompanharam mas ainda assim, não
me livrei de “papar” as salas intermináveis com filas de maquinetas, geringonças
e traquitanas que se prolongavam até ao ponto de fuga, exemplares que acompanhavam
os séculos mas que a mim interessavam peva! Uma sala com dezenas de máquinas de
escrever, qual linha de montagem da indústria fordiana! E a bela cidade de
Londres ali tão perto, à distância da espessura de uma parede… Do que é mais
gostei naquele museu? Da loja! Aquilo sim, tinha material de interesse: uma
caneta que se aguentava suspensa pela força magnética numa das extremidades,
jogos com ímanes, espelhos e outros efeitos curiosos… enfim: coisas giras. Além
da loja, recordo-me de duas exposições temporárias no piso térreo, uma sobre a
construção do túnel sob o Canal da Mancha e outra sobre a exploração espacial.
De resto: um longo bocejo e uma dor de costas daquelas…
Quem é que no seu
perfeito juízo concebe uma câmara de tortura daquele tamanho?! Critica-se o
ensino expositivo e o tempo que os miúdos passam na escola, como sendo
verdadeiros antídotos para a atenção que se lhes quer captar, mas promovem-se
estes labirintos da salas de aula onde não podemos tocar em nada, esperando que
permaneçamos com a atenção nos pícaros durante a dor de costas que não vê meio
de encontrar uma cadeira para se acalmar, que não a de um qualquer foguetão
onde o Yuri Gagarine ou o Neil Armstrong tenham sentado o cu!
Claro que nem
entrámos no Museu Britânico ou no de História Natural. À primeira todos caem, à
segunda cai quem quer e à terceira cai quem é burro. Mas estava escrito que eu não
me livraria de convergir para burro.
Paris, 1997.
Louvre.
Se o Museu da
Ciência era estratosférico, o Louvre é o deboche! Aquele lugar é a indecência
na Terra! Desconfio que a minha vida inteira não seria suficiente para ver
todas aquelas peças, pecinhas, cacos, estatuetas, pinturas, riscos e rabiscos
com a atenção que uma obra de arte merece ser apreciada. Não temos que gostar
todos do mesmo mas eu, que até gosto de ver uma ou outra peça, vejo no serviço
prestado por estes museus o desincentivo mais eficiente alguma vez promovido
contra a Arte. Um pouco como a dissecação desapaixonada de algumas das mais
belas obras de Literatura no ensino secundário.
E depois de nos
embrenharmos e quase nos perdermos numa das quatro alas do Museu, lá
encontrámos a maneta: a Vénus de Milo
é daquelas estátuas que ganhou uma fama bem maior do que a arte que a suporta.
Pelo menos para mim que olho para muitas outras estátuas espalhadas por esse
mundo fora e não entendo o porquê daquela ser tão mais merecedora de atenção do
que um qualquer Camões em pedra numa praça de um município lusitano. A bufar a
intervalos cada vez mais reduzidos, iniciámos a interminável odisseia ao longo
das setas que apontavam para a Mona Lisa,
qual Caminho de Santiago onde somente o final importava! Devemos ter passado
por salas com quadros bem bonitos mas eu estava-me simplesmente a cagar para
aquela merda: só antevia o momento em que desse de frente com a Gioconda para zarpar dali para fora!
Depois de me ter perdido no tempo, chegámos ao espaço onde deveria estar o
famoso quadro de DaVinci, a avaliar pela quantidade insuportável de turistas e flashes que se juntavam em frente à Terra Prometida. Furando por entre as
mochilas e o suor, eis que a vejo naquele sorriso gozão… Aquilo não é um
quadro, é um pin! Pouco maior do que
uma folha A4! Engoli em seco e devo-me ter virado para os meus pais e dito algo
como Já está!… E estava mesmo pois
todos nós, saturados daquele quarto de museu que vimos na diagonal, resolvemos
sair. Afinal não havíamos feito mal a ninguém.
Madrid, 2009.
As quatro horas e
meia que me demorei no Museu do Prado, ainda que extenuantes, foram suportadas
por alguns motivos de interesse que eu levava de antemão, a saber:
- A escultura de Isabel Velada, de Torregianni, de que tinha
ouvido falar pela primeira vez pela Ana Filipa, que havia visitado o museu e a
quem esta obra caira no goto. E é de facto uma escultura fantástica!
- La Maja Desnuda, de Goya, quadro cuja
curiosidade havia sido plantada em mim aquando da leitura do livro de Jostein
Gaarder, Maya – O Romance da Criação,
cuja acção, entre outros motivos, gira em torno deste quadro.
- Os Fuzilamentos de 3 de Maio, de Goya,
um quadro que me marcou pelo realismo que senti quando o vi. Não tinha qualquer
referência prévia, mas algo mexeu cá dentro.
- As Meninas, de
Velásquez, é um quadro engraçado mas quer dizer… como aquele há muitos… também
não vamos agora armar ao intelectualóide e começar a falar nas expressões, na
luz, bla, bla, bla…
De resto, o Prado
encontra-se carregado de arte demasiado pesada para o meu gosto: inúmeros
trípticos da Idade Média com o Inferno e o Paraíso a entalarem o Purgatório no
espaço central e muita pincelada de expressões façanhudas, berloques e homens
de collants.
No Reina Sofia aconteceu,
pela primeira vez na vida (e até hoje, também a última), apaixonar-me por um
quadro: Guernica é uma obra
impressionante! Não consigo precisar o tempo que me demorei a observá-la,
passando de um detalhe para outro, voltando ao todo, afastando-me,
aproximando-me,… vi depois a exposição que se encontrava nas divisões contíguas
sobre a Guerra Civil de Espanha (com a famosa fotografia O Soldado Caído de Robert Capa). Este sim, é um Museu! Arejado, de
arte moderna, agradável, não demasiado grande (é grande mas, comparativamente
com os armazéns da arte negra, possui
poucas obras, permitindo que nos detenhamos um pouco em cada uma sem sentirmos
a culpa d’aqueles segundos nos estarem a roubar tempo para ver o que resta do
museu). Algumas parvoíces de Miró e dois quadros muito interessantes de Dalí – Figura à Janela e A Face do Grande Masturbador – completam o que recordo com maior
nitidez da visita ao Reina Sofia.
Londres, 2010
Tate Modern… não me lixem…
too modern for me. Pelo menos não paguei entrada…
o melhor: a vista do terraço sobre o Tamisa e a Catedral de St. Paul.
Dois museus a reter
em Londres – uma escolha pessoal, pela temática obviamente – Imperial War
(grande) e Cabinet War Rooms (pequeno). O primeiro atravessa as participações
britânicas nas guerras ao longo da História e o segundo não é mais do que o bunker onde o senhor WC passou boa parte
da II Guerra. Este último, situado em Westminster, é um dos meus museus preferidos.
Paris, 2011
O Museu D’Orsay
resultou, arquitectónica e artisticamente, numa lufada de ar fresco: montado
sobre uma antiga estação de caminho-de-ferro, até hoje este foi porventura o
único dos grandes museus que não me cansou. A ignorância de que padeço a
propósito das tintas e pincéis que levaram alguns artistas à loucura e outros ao
suicídio acompanhou-me durante a manhã que me demorei no d’Orsay: recordo a
alegria que me invadiu (e quão culto me achei então, do alto do meu
desconhecimento) quando vi exposto bem próximo da entrada A Mãe de Whistler, o quadro que suporta o enredo do filme Bean! Finalmente um quadro que eu
conhecia de antemão! Senti-me um verdadeiro marchand!
Faltava o monóculo, o lenço ao pescoço, a bengala e aquele trejeito
cagão/irritante de quem se move umas nuvens acima da realidade ignorante que o
rodeia. Claro que, sobre o quadro, visualizei logo a penca que Mr. Bean
desenhou sobre ele numa tentativa de restauro falhada (alerta: spoiler!). Prosseguindo, tropecei em
mais dois quadros engraçados: uma das Noites
Estreladas do Van Gogh, não a mais popular mas aquela que tem uma
esplanada… após uma pesquisa, descobri que se chama O Terraço do Café na Place du Forum, Arles, à Noite. Van Gogh é um
dos pintores de que mais gosto, com a sua personalidade sombria, a vida no
limite e a arte como veículo através da qual expulsava os traumas carregados de
cor e movimento. A letra da canção de Don Mclean faz-lhe justiça. Um ou outro
quadro dos impressionistas franceses (Monet ou Manet – campos ou nenúfares)
fechou a loja das recordações das obras do D’Orsay. Mas do que gostei mesmo foi
do espaço: luminoso, arejado, sem cair no estilo “depósito de arte”.
O corolário do
périplo museológico na segunda visita a Paris deu-se em duas pequenas coisas boas,
o Museu Rodin e o L’Orangerie. Vale a pena visitar museus sobre os quais nos
referimos mais tarde como “dei uma saltada ao Museu Rodin” sem parecer que nos
estivemos a despachar para cumprir mais um item de uma check list.
As check lists cumprem tantas vezes o
propósito de mostrar aos outros os desejos que julgamos serem admirados pela
maioria do que um elenco de objectivos verdadeiramente nossos. Desconstruir
esta beatificação dos museus será um sacrilégio para muitos mas gostos são
gostos e eu não gosto assim tanto de museus. Provavelmente o trauma de início
de adolescência no Museu da Ciência justificará esta minha reserva em relação
aos guardiães da Arte e da História da Terra, mas isso é a vida.
Epílogo:
Visitei o Museu do
Benfica um dia depois de chegar de Marrocos.
Quarenta graus em
Lisboa.
O corpo virado do
avesso entre febre, vómitos e uma fraqueza de que não me lembro alguma vez de
ter tido.
O João, a Marta e o
Daniel a conduzirem-me pelos locais que eu mal conseguia ver. Ainda assim,
aquelas Taças de Portugal, Campeonatos Nacionais, Troféus Europeus e todas as
galerias de notáveis, atravessaram o véu do meu estado febril para chegar ao
topo do pódio do melhor museu português, ou não estivesse ele situado na mais
bela Catedral do país. São museus como este que me fazem continuar a ter
esperança na humanidade e na sua capacidade de superação.
Caparide,
13 a 16 de Junho de 2019
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