O caminho para o Sul |
A vontade de rumar
ao sul era tanta quanta a que me levou a partir para norte há quinze dias. Faz
hoje uma semana, entrávamos em Santiago com um calor abrasador e muitas emoções
para digerir. Esta viagem, antítese e corolário dessa outra, estava marcada há
meses; o descanso depois do Caminho.
O Sul de Erice, esse guardador dos sonhos, desejos e todo o inexplicável que
almejamos sem conseguir envolver no abraço da nossa realidade. O filme,
acidentalmente inacabado, conferiu ao Sul o apetite do desconhecido, o fascínio
que nos faz caminhar, para Santiago, para o Sul ou para onde quer que busquemos
o que procuramos.
Após a saída
esquizóide da capital – fim-de-semana prolongado – a autoestrada suavizou a
paisagem e voei sobre a planície com a lenta descida do crepúsculo. O sol
corria trás, para noroeste da minha rota, ponto em movimento acelerado com
pressa de recuperar o tempo perdido sem saber para quê... (resquícios da
cidade, talvez?) Nada tinha para fazer à chegada a não ser desfrutar. O cenário
materializou-se então no lugar onde decorria a acção de Autoestrada do Sul, conto de Julio Cortázar lido pouco tempo antes
de fazer o Caminho de Santiago. Na história, um engarrafamento na Autoestrada
do Sul a caminho de Paris começa a formar-se ao entardecer; na história iam
para norte; na história o tráfego estagna e uma mini-sociedade surge entre os
automobilistas à medida que os minutos se fazem horas e as horas se diluem em
dias. Não havia trânsito parado no meu caminho mas sim o espectro do sul lá bem
ao fundo, muito antes de eu conseguir avistar alguma coisa.
Uma mensagem pendurada
na vontade de responder clamava pela tentação de escrever ao volante, mas os
domingueiros haviam saltado da toca para o fim-de-semana prolongado e não
consegui digitar e conduzir sem sentir o desconforto evitável. E eis que surgem
as luzes, qual desejo de génio da lâmpada antes ainda do sul se fundir com a
minha vida: luzes vermelhas ininterruptas e amarelas a piscar… o
engarrafamento; a oportunidade de responder à conversa pendente; a
transformação da realidade na ficção; e a razão da minha pressa a surgir fora
de tempo: todos estes elementos a borbulhar na minha cabeça e o texto começou a
ganhar forma… a pressa para o agarrar antes de ele fugir para sempre, pelo
menos do jeito que me ia aparecendo enquanto estava ao volante (os mais
belos
trechos surgem sempre quando não os posso registar; no momento em que
finalmente consigo as condições para os organizar, o que sai é pouco melhor do
que uma bela merda e só à custa de bastante esforço a merda consegue pelo menos
perder o cheiro, mas comparado com a ideia inicial, não deixa de ser uma merda…
tento recordar as expressões que me chegaram quando ia a 150 kms/h ou quando
tropeçava no pára-arranca, mas pouco restou para poder aqui ser encaixado). A
urgência de chegar era tão só para que nada me escapasse… não… demasiado
poético, foleiro mesmo. Acho que a pressa tinha mesmo a ver com a vontade de
dar uma voltinha pela cidade, o que já não vai acontecer. Lamento, mas até era
bonita a ideia de ter pressa antes de tempo para escrever o texto da viagem que
me estava a acontecer.
O engarrafamento |
O Sul |
Vinte minutos num
engarrafamento é pior do que uma telenovela e rapidamente o interesse pelos
meus companheiros de peregrinação ao sul se converteu numa série de impropérios
(interiores) para o acidente ou para as obras que deveriam ser responsáveis por
aquele cenário.
Olhando para Sul |
Depois de aplaudir
o sadismo da autoridade em realizar uma operação daquelas em véspera de
fim-de-semana prolongado, prossegui para sul. A conversa afastava-se para norte
mas havia começado uma semana antes em Santiago. Ou teria sido em Padrón? São
tantas as incertezas no crepúsculo em que os destinos se atraem e afastam que
uma viagem pode travar num engarrafamento, uma conversa num mal-entendido e o
caminho para norte ser afinal o mesmo que nos leva ao sul. O sul que recebe o
meu descanso enquanto a norte se faz festa rija.
Final de dia no Sul |
Os dias aguardam
pela tranquilidade e pelos próximos passos da viagem, do caminho ou que quer
que chamemos a este percurso.
Chego à camarata e um tipo dorme na cama que
seria minha nestes dias: estou condenado a escrever este texto hoje e venho
para a sala de convívio. Quando a força das circunstâncias é mais forte, há que
seguir a corrente e fazer o que a viagem vinha a indicar. Apesar de ter
repetido o Caminho de Santiago; apesar de regressar a este sul pela n-ésima
vez, nem um nem outro se repetem nunca. O Caminho trouxe-me algo bom. O sul
trará a primeira prova.
*Título de um conto
de Julio Cortázar presente no livro Todos
os Fogos o Fogo.
Tavira,
7 de Junho de 2019
Comentários