Santos Populares



O tipo que jogava xadrez sentou-se duas mesas afastado da minha. Estava com a namorada, uma mulher roliça com o cabelo curto cravado de madeixas, cujo arrojo na aparência não condizia com o ar apatetado do companheiro. Soprava vento e no jarro de sangria pousado na minha mesa restava um terço da quantidade que eu trouxera, por isso, se eu disser que me lembro que o apelido dele coincidia com um fruto seco poderei estar a fermentar a confusão com o preâmbulo do efeito do álcool a fazer-se sentir. Recordo quando ele entrou para o clube, já eu não praticava lá atletismo, propondo a formação de um núcleo de xadrez… todos merecem um lugar ao sol – diz o meu preconceito – e o xadrez é uma actividade tão válida como outra qualquer. O jogo não tem culpa que eu não tenha paciência para esperar que o meu oponente leve cinco minutos de eternidade para mover um peão… ainda para mais quando sinto sempre que a jogada me parece inofensiva mas sei que vou ser trucidado assim que decidir mexer a peça seguinte. É um jogo manhoso.
Já disse que estava vento mas repito-o porque estava muito e vi a Rita chegar ao recinto do clube onde pratiquei atletismo (creio já ter dito isto também…) para o mini-arraial. No terceiro ciclo éramos putos mas agora, adultos feitos, cumprimentamo-nos, ela com a prole atrás, eu à espera da minha irmã e da minha sobrinha que há pouco completou nove meses.
Não é o vento que me desequilibra quando vou pagar a sobremesa para diluir a sangria que me resta mas o ar fresco atenua o desnorte que me ampara enquanto a famelga não chega e me vejo obrigado e continuar a beber para passar o tempo. As colunas debitam a rapsódia costumeira que alterna entre as marchas populares da época e o pimba de verão que, por algum motivo, o imaginário colectivo congregou no género popular e a verdade é que a alternância entre um estilo e outro não destoa. O Chama o António, vomitado em jeitos de gozo regorgitado por conhecidos sempre que a música toca e eu estou presente, já só encontra em mim aquele sorriso do A sério?! A mesma piada há vinte anos meu burro do caralho?, e sorrio, e o burro fica contente com a piadola mais gasta do que punheta de um depravado.
O efeito do álcool é fantástico quando o consigo equilibrar no ponto em que me desequilibra sem me deixar cair, em que me solta sem me deixar aparvalhar, em que me anima sem me deixar adormecer. E hoje aconteceu, se bem que a ordem de soltura não tenha encontrado eco no meio envolvente uma vez que, chegada a minha sobrinha – nove meses de gente depositados no meu colo – obrigou-me a um esforço de trapezista para manter a bebé na vertical sobre o piso que ondulava a cada rajada.
Estava frio, e nem o casaco nem o álcool me protegiam do desconforto das “acolhedoras” noites da linha. Tive que me sentar para garantir que a Luísa não caía, e comi finalmente o arroz doce. Depois de terminar o jarro, fui buscar um chouriço e mais um copo para empurrar. Não cheguei a estar bêbedo – nunca aconteceu – mas o chouriço soube-me a ginjas. A Luísa é que gozou o carroussel e voou sobre a minha cabeça umas quantas vezes (os primeiros sorrisos que lhe arranquei – os miúdos crescem e é uma merda: quando era mais pequena um gajo pegava nela ao colo e nem bufava, agora é preciso beber quatro copos para lhe arrancar um sorriso…).
Pela primeira vez em muitos anos não fui para os apalpões alfacinhas em que invariavelmente se convertem as noites de Santo António. Bêbedos e apertões em movimentos aleatórios pelas ruas regadas de álcool; pelas onze o sono começa a bater mas sei que só chegarei a casa daí a três ou quatro horas, isto se tiver a sorte de não esbarrar numa operação stop (até tenho tido sorte com os senhores agentes). Desde que, no meio das ganzas e do asfalto pegajoso forrado de álcool, lixo, restos de sardinha e outras sobras, decido ir embora, até ao instante em que levo a chave à porta de casa, vão pelo menos duas horas! É que os bairros de folia ficam na zona baixa da cidade e o carro, para continuar transitável, fica preservado do Saldanha para cima. Uma hora a pé (pelo menos) mais meia hora de carro (se a policia contribuir, a viagem de carro até pode ser mais curta) e chego a casa de rastos.
Este ano não passei por esse calvário mas creio que bebi mais do que no meio dos bêbedos alfacinhas. Estava vento no recinto do clube e as minhas irmãs e a minha sobrinha nunca mais vinham. Comi e bebi – dizem que ajuda a passar o tempo – e vi caras que conheço sem saber de onde.
Amanhã é feriado; o álcool pode repousar calmamente; o corpo agradece. Mas não se escapa ao treino porque a vida não é só festa! Cheira-me a que amanhã tenho o ginásio é só para mim.
  
Caparide, 12 de Junho de 2019

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