Quão mais do que a
história impressa recebemos ao lermos um livro velho?
Um livro velho já
foi de alguém, alguém que leu aquelas páginas agora amarelecidas, umas coladas,
outras desprendidas, mal traduzidas mas que naquele tempo era tudo o que havia
para oferecer a quem arriscava ler; páginas que libertam o odor que acompanhou
gerações e que inalamos ao tocar a capa em papel, inibidor de perfumes que nos
detém neste outro aroma… o sentimento de estarmos a respirar a história que
aquele exemplar atravessou. Uma história de família, no caso.
Páginas manchadas, marcas da idade |
Não foi a primeira
vez que fui à estante do meu pai buscar um livro que alguém leu. Mas nela repousam
quase só os livros que ele leu (quantas
grandes obras e autores não me foram oferecidos pelas leituras da sua juventude?).
Na garagem do meu pai estão guardados os antepassados dos livros do seu tempo,
livros cujas capas eram em papel, as páginas não tinham todas a mesma medida e
o preço nos faz sorrir pelo seu vínculo quase “histórico”. Na garagem do meu
pai os livros estão no chão.
Foram várias as
investidas com que a vida me tentou para ler Stefan Zweig, desde programas de
rádio, considerações do meu ex-director (Já
ninguém lê isso, o que, obviamente, aguçou o meu apetite) ou um encontro
fortuito com um conhecedor de livros no aeroporto de Madrid. Houve no entanto
uma nota que sempre se sobrepôs a todas as outras: Era um dos autores preferidos do meu pai… – disse-me um dia o meu
pai quando lhe perguntei se conhecia Zweig – … temos vários livros dele guardados na garagem.
O meu avô (década de 40?) |
Por volta de
1949-1950, o meu avô deixou de falar e de se mexer. O meu pai diz que foi uma
reacção à morte, aos sete anos, da sua filha Leonor, minha tia (não sei se
fará sentido chamá-la de tia). Morreu quatro anos depois, em 1953, vinte e oito
anos de eu nascer, pouco deixando ao meu pai da educação que um pai deve dar a
um filho. A mim deixou-me (ou chegaram-me?) os seus livros.
Há meses que O Medo repousava na minha
mesa-de-cabeceira. Trouxe-o da garagem do meu pai num impulso momentâneo, com o
entusiasmo de quem diz a uma mulher (na minha idade já não me apraz dizer
rapariga) que temos que combinar algo,
para logo a vontade de esse algo esmorecer, apesar de sabermos que um dia
gostaríamos que acontecesse. E o livro ali ficou, à espera do momento certo.
Quantas vezes o
momento certo não nos visita mais por exclusão de partes do que por uma conexão
efectiva com a obra (ou a mulher) que acabamos por ter como companhia? Nos dois
meses anteriores à semana em Londres, comecei a ler uns quatro ou cinco livros,
sem que nenhum fixasse a minha atenção. Na noite antes da partida, coloquei
quatro livros junto do trolley.
Consecutivamente! Pegava num, depositava-o, arrependia-me, arrumava-o, colocava
outro… e foi na manhã em que saí para o aeroporto que substitui o livro de
bolso de ficção científica que havia elegido pel’O Medo.
'O Medo' com o meu marcador |
Só então reparei
que além do nome do meu avô (não sei se assinado por ele se por alguém que lhe
ofereceu o livro), a capa continha uma data, também ela escrita à mão: 4-VIII-938. Oitenta e um anos que me
separam do momento em que o meu avô terá recebido o livro, ele que gostava de
Zweig e que manuseou estas páginas que me acompanharam durante a viagem, na
qual li o primeiro conto, que dá o nome ao livro, um dos melhores que li até
hoje. E como é bom ler algo tão próximo da perfeição e entender por que razão
este autor captou a atenção do meu avô. Provavelmente, se a história não me
tivesse arrebatado este texto não teria sido escrito. “Uma história de família, no caso.” escrevi há pouco, e é o que este
texto (também) é: o pai do meu pai, duas gerações desencontradas por vinte e
oito anos, reencontradas por um gosto literário comum.
O marcador do meu avô |
O meu avô era
cirurgião: adoeceu aos quarenta e nove e morreu com cinquenta e três anos.
Gostava de Stefan Zweig. É tudo o que sei sobre ele e contudo, sinto-o mais
próximo, não apenas depois de ter lido algo de que ambos gostámos, mas por ter
lido exactamente o livro que ele leu… ele folheou aquelas páginas, marcou-as
com o recorte de jornal que o livro ainda hoje guarda ao fim de oitenta e um
anos “CRONICAS MEDICAS – A febre tifoide” assim mesmo, sem acentos. Eu pauto a
leitura com um marcador do Caminho de Santiago: cada um marca o ritmo da
leitura com aquilo que o move.
Este conto
trouxe-me de volta à leitura! Um exemplo de construção, um prazer. Comecei a
ler o conto no metro de Lisboa e quando o retirei da mala, notei que havia
acrescentado uma dobra em toda a base da capa de papel… se fosse novo, todas as
dobras seriam bem-vindas (as “marcas da guerra”: este foi lido e não apenas
comprado para bibelot!) mas um livro
velho não deve ser estragado! Deveria ser preservado, como se existisse um
estado de deterioração a partir do qual os livros obrigatoriamente se eternizassem…
Continuei e leitura no Aeroporto da Portela e terminei-a a onze mil metros de
altitude, passeando pelas palavras com uma leveza como se voasse sobre as nuvens
lá em baixo. O voo não trouxe para o meu lado ninguém interessante como
companhia mas cedo percebi que não iria estar disponível. A viagem estava
reservada para conhecer o meu avô.
Londres,
30 de Julho de 2019
Comentários
O meu pai tem lá vários livros dele (do Stefan Zweig e do avô) na garagem.
É uma experiência engraçada gostarmos de algo que sabemos ter tido significado para um antepassado que, não sendo tão distante, não conhecemos.
Um beijinho!