Uma Separação


Não suporto vê-la vestida daquela forma! Vê-se mesmo que é para provocar, sobretudo os meus amigos que mal a veem adquirem logo aquele ar rebarbado. Não tenho culpa que tenham casado com feias, chatas ou impossíveis de aturar. Mas a minha foi-se tornando numa dessas que julgam que atraem o marido fazendo-se aos outros. Está enganada. Eu, que nunca lhe dei razão alguma para proceder desta forma: nunca fui atrás de um rabo de saias, nunca deixei que algo faltasse cá em casa e muito menos fui violento, por actos ou por palavras, no passado ou no presente, com ela ou com o Diogo, que não tem culpa nenhuma da ausência do pai mas cujas consequências estão aí: as notas pioraram, tal como o comportamento e eu não consigo falar com ele. Fecha-se no quarto com o telemóvel ou o tablet, e tudo o que ele faz nesse mundo virtual é para mim um mistério. O que não é mistério nenhum é o tempo que ele não dedica à escola. O pai não entende e acusa-me dos maiores disparates, apontando-os como a causa da alteração no comportamento do miúdo mas será que ele não vê? Será que não entende quanto a sua ausência foi envolvendo as nossas vidas? O trabalho até tarde “para que nada nos faltasse”; os jogos da bola no café, para onde chegou a ir sem passar por casa para jantar ou de onde aconteceu voltar depois da meia-noite, quando ouvi a porta da rua bater sem que ele soubesse que eu estava acordado pois fui fazendo do meu quarto o refúgio contra o vazio que se instalou entre os meus pais. E por inerência, entre mim e eles. Eu pensava que era com discussões, traições e violência que os casamentos se desfaziam e as famílias se desmembravam mas no caso da minha, foi a ausência de tudo isso que estendeu a passadeira à passagem do fim; disso e de tudo o que faz as famílias permanecerem unidas… a ausência de tudo é uma ideia interessante Diogo: tocaste num ponto sensível que eu gostava de explorar contigo. Pelo que contaste nesta sessão, não me parece que esse vazio se tenha instalado somente no passado recente nem que tenha crescido progressivamente mas que sempre existiu de forma muito nítida. A questão é que há fases na vida das famílias que as distraem desse vazio: o período de enamoramento, a progressão nas carreiras, os filhos pequenos, tudo isso esconde o vazio nos escolhos da rotina, mas quando esta deixa de ser suficiente, a falta de comunicação que se instalou entre nós é gritante sr. director. Ela acusa-me de eu ter colocado a vida profissional à frente da família, como se eu fosse culpado de lhe ter proporcionado a vida que ela hoje tem, da qual aproveita para se pavonear em frente a toda a gente, fazendo de mim o “corno”. Pela primeira vez na vida temo cometer uma loucura porque a verdade é que a atitude dela me deixa louco, algo a que eu nunca pensei que ele pudesse chegar. Ele está desvairado por eu ter simplesmente deixado de ser a dona de casa que vestia roupa larga e não se pintava para começar a andar um pouco mais arranjada. Cuidar de mim ainda não é crime pois não amiga? Mas ele não consegue ver isso! Agora discutimos todos os dias por causa do que eu visto, da forma como me penteio ou do tempo em que não estive em casa, e tudo isso à frente do miúdo. Ele, que já mal sai do quarto, coitado, deixou praticamente de falar connosco, e parece que a culpa é minha! Já viste isto? Como é que é possível vermos histórias tão diferentes numa mesma história doutor? O meu pai acha uma coisa, a minha mãe acha outra e eu acho que eles nunca gostaram um do outro. Esse vazio que o doutor sugeriu que sempre passeou entre nós é uma coisa que eu vejo há muito mas não tenho conseguido traduzir. Não me lembro de sermos uma família onde houvesse harmonia. Havia sempre uma tensão latente, tensão essa que não se desvanecia porque não falávamos sobre isso. Nem sobre isso nem sobre mais nada além dos assuntos que mantinham as pontas da aparência seguras, como o que comprar para a casa, onde passar férias ou que notas eu tinha tido. E quando as notas baixaram… Deixa-me adivinhar: despoletaram a crise? É humano, embora não devesse ser Diogo, os pais agarrarem as consequências como causas e lavarem daí as suas mãos. Não o fazem por mal, mas a ideia de não ter razão em algo tão estruturante como um problema familiar é assustador para quem deveria proteger e não acusar. A culpa é um conceito que ainda não conseguimos largar mas uma coisa te garanto: se ela existe, não é tua de certeza. Os elementos da família devem aprender a assumir a sua responsabilidade e eu creio que a melhor forma de assumir a minha é separar-me dela. Não me reconheço no meu comportamento e não gosto de ser assim. É um fracasso, mas tenho que ultrapassar esta forma de ver as coisas. Por vezes desistir é a melhor forma de continuar e o que havia entre nós esgotou-se, se é que em algum momento houve algo realmente profundo que nos uniu, mas isso é para reflectir mais tarde. Por agora, há que tentar minimizar os danos e não prolongar este caminho de destruição. Fiz tudo o que podia para manter o casamento com ele mas não há nada na vida pelo qual devamos fazer tudo: temos que fazer o necessário e suficiente para levar as coisas a bom porto. Se isso não chegar, então só estamos a gastar energia, e foi isso que aconteceu connosco. Entristece-me ver fracassar o que construímos juntos mas quando chegamos ao ponto de eu já não poder vestir o que me apetece, então já tudo foi ultrapassado. Também é pelo Diogo que nos separamos, mas em abono da verdade, é sobretudo por nós. Já chega de o utilizarmos como desculpa para o rol de disparates que foram formando as nossas atitudes ao longo destes anos. É por nós, pela nossa sanidade mental e pela felicidade que todos merecemos alcançar na vida, doutor. Eles nunca quiseram saber o que eu pensava sobre a nossa vida e a verdade é que o sentimento que se sobrepõe a todos os outros é “Alívio”! Se fosse comigo, há muito que me teria separado pois há anos que os meus pais não tinham vida: passavam juntos pela vida sem a viverem verdadeiramente e o facto de teres sido tu a descobrir essa verdade Diogo, torna-te mais apto a evitar repetir os erros no futuro. A comunicação é essencial. As notas na escola também, embora…

Caparide, 23 de Junho de 2019


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