Comecemos pelo fim:
fui enrabado!
No dia dez de Julho
de 2006 pelas dezanove horas, uma via que até então eu sempre julgara ser de
sentido único (que ignorância!) mostrou-me possuir dois sentidos, e que o
orifício de saída é o mesmo que convida à entrada a corpos estranhos.
Recuemos.
Soube meses antes
que aquele dia chegaria, mas quando os dias se contam por meses não nos
preocupamos. Começamos a ficar inquietos quando os dias que nos separam da data
fatídica deixam de ser suficientes para preencher um mês… e começamos a medir o
tempo em semanas, como se assim conseguíssemos iludir a realidade e empurrar um
momento que se mantém estático, de braços abertos à nossa aproximação. Depois,
as semanas vão-se esgotando até que a partição não tem senão como cair na
granularidade diária… e eu a imaginar o instante que me sugaria o tempo e os
nervos.
Estes momentos
requerem não apenas uma predisposição mental para o trauma que antecipamos, mas
também uma preparação física pois é todo um admirável
mundo novo que é em nós desbravado aquando de uma invasão deste calibre. O
rio corre para o mar tal como o vómito é expelido boca fora. O contrário seria
mais estranho, mas às vezes somos surpreendidos com coisas estranhas…
No dia anterior eu
deveria cumprir com um ritual para chegar ao momento da consumação “limpinho”:
feita a digestão do almoço, teria que ingerir quatro litros de água contendo um
preparado diluído de outras tantas saquetas de um pó que sabia a baunilha. Eu até gosto de baunilha – pensei – pelo menos nem tudo é mau – e trouxe o
pó da farmácia, não propriamente contente mas pelo menos consolado por ter a
oportunidade de ficar tranquilamente em casa a beber algo que até nem
desgostava.
Levei o primeiro
gole à boca e ia vomitando logo ali, na sala! Devo ter começado a suar qual
reflexo condicionado, e quando olhei para o jarro com os 0,975 litros que
faltavam, só desejava desfazer-me logo em merda para não ter que beber aquilo.
Depois olhei para a caixa… três saquetas por abrir! Como é que alguém não
desaparece depois de beber quatro litros de laxante com sabor a vómito?!
Não demorou muito
até eu começar a fazer piscinas para a casa de banho e a partir desse momento
percebi a quantidade de merda que ingerimos no dia-a-dia! Nunca pensei que o
meu corpo pudesse ser a origem de uma tal enxurrada. Decerto que as cheias de
1967 não tiveram tamanho caudal nem a pressão das cataratas do Niagara chega
aos calcanhares do sem número de jactos que disparei naquela tarde!
Nunca gostei de
pintar à pistola mas tinha que ser; o que eu não esperava era o brinde: ficava
baralhado se me devia sentar ou ajoelhar em frente à sanita pois entre as
golfadas de vómito que ameaçavam seguir pelas vias nasais perante os dentes
mais que cerrados com que eu tentava conter o maremoto no meu estômago e o click mais instantâneo do que a
velocidade da luz com que um novo disparo se fazia anunciar desde o dark side of the moon, foi uma baralhação
que não permitia hesitações!
Ainda não tinha engolido
meio litro (sempre com os dedos a tapar o nariz pois a baunilha converteu-se no
cheiro mais nauseabundo de que até hoje tenho memória) e já tinha perdido uns
dois quilos! Pelo menos! Ao menos que haja alguma utilidade em toda esta
revolução. Por essa altura (ainda me faltava beber 87,5% daquela gosma) pedi a
uma das minhas irmãs para me comprar latas de Ice Tea; comecei a tirar o gosto de merda da boca mal bebia 1ml
daquilo. Conclusão: por entre os quatro litros daquele mijo disfarçado ingeri
outras tantos Ice Teas (33cl) que me
salvaram do vómito certo e fiz da sanita da casa-de-banho do meu quarto o trono
real onde passei uma parcela razoável daquela tarde memorável de nove de Julho
de 2006.
Durante mais de
dois anos, a palavra “baunilha” era suficiente para causar náuseas. Deixou de
fazer parte da minha cadeia alimentar: nem paleo, nem mediterrânica, nem vegan;
gelados, iogurtes ou sobremesas passaram a ser censurados se o mais leve
indício dessa planta maldita figurasse nos ingredientes.
Não comi mais nada
no resto do dia. Só expeli o que ainda restava no meu interior, qual vulcão
invertido projectando o que quer que ainda restasse das entranhas diluídas sem
aviso nem piedade.
E eis que nasceu o
dia da grande violação; uma sensação estranha atravessou-me toda a manhã em que
já pouco havia para libertar. Como também não podia comer (nem tinha grande
fome, diga-se) a cabeça não pensava direito mas – e não foi a primeira vez que
me aconteceu – um certo conformismo tomou conta de mim como se o lado lamechas
do cérebro obedecesse ao “Tem que ser!” que o hemisfério racional ditou.
E lá fui para o
posto médico, a caminho da Colonoscopia (que nome tão de ficção científica…
tanto pode ser uma deusa estranha vinda de um passado ancestral – Terra Mãe,
Gaia do tempo em que tudo era um matriarcado de paz e amor, e tal… como uma
estrela ou uma constelação a orbitar na orla de uma nebulosa misteriosa nos
confins do caralho mais velho do Universo).
Já fiz muitos exames mas esse fiz sem anestesia… e esse
não foi dos que mais gostei – havia-me dito o meu vizinho pouco tempo antes… G’anda Foda!
Foi o meu pai quem
me levou pois eu não podia conduzir no regresso (só essa condição era
suficiente para me desfalecerem as pernas e os braços… por que razão eu não poderia conduzir depois?! Creio que naquele
momento eu não queria ver respondida esta pergunta). Na sala de espera encontrámos
a senhora que tomava conta da papelaria em frente da nossa casa. Outra que vai ser enrabada – pensei eu,
sem conseguir tirar partido do gozo que tal constatação me daria numa situação
normal. E o que eu não dava por um minuto de normalidade…
Além de gerir a
papelaria, a mulher era vidente: lançava as cartas numa divisão que tinha por
trás do balcão. Esta pelo menos sabe ao
que vem pois já deve ter visto o filme todo. É então que ela é chamada e,
ainda não tinham passado cinco minutos e já a mulher saía disparada da sala do
exame atravessando a correr a sala de espera até aterrar nos braços do marido
deixando perceber, num choro contido a tender em crescendo para o histérico: Não consegui fazer! NÃO CONSEGUI FAZER!
Bom! Lembro-me de
me virar para o meu pai e dizer: Estou
fodido!
Não te preocupes. – disse-me ele… Como?!
Não me preocupo?! Por acaso queres trocar comigo?! Se nem a bruxa conseguiu ver
o futuro nos astros, nas cartas ou nos búzios…
Oiço o meu nome…
Parei à porta do
gabinete médico onde os sorrisos com que a médica e a enfermeira me encandearam
eram mais amarelos do que a face de um chinês com icterícia. Perguntei, antes
de me apresentar, se era com anestesia. A resposta abriu-me um oceano de
dúvidas: Não se preocupe com a senhora
que acabou de sair daqui! Resolvi não me preocupar.
Não me preocupei
quando vi a mangueira violadora com uma esfera na extremidade, uma espécie de lâmpada
que só me evocava o capacete do escafandro do Jacques Cousteau. Não me preocupei quando me disse que era “apenas”
com anestesia local. Não me preocupei quando comecei a sentir um corpo estranho
entrar pelo sentido proibido e eu cortei a estrada expulsando o Cousteau que se preparava para o
mergulho em águas profundas. Não me preocupei quando elas disseram para eu não
“empurrar”, algo tão natural como rodar a chave na fechadura quando oiço um
gatuno do lado de fora. Não me preocupei quando elas iam dizendo que não lhes
parecia haver nada de mal (depois daqueles dois dias, eu estava-me
completamente nas tintas para o que eu tinha ou deixava de ter). E não me
preocupei quando saí, constatando que a anestesia havia dado o seu contributo,
e que afinal eu podia conduzir perfeitamente!
Até àquele dia, as
únicas matérias exteriores às quais eu alguma vez havia permitido o acesso pela
porta dos fundos eram a água e o sabão.
Se tiver que voltar
a repetir a brincadeira, prefiro fazer greve de fome a ter que beber aquele
preparado de urina de morcego vomitada novamente!
PS: A data ficou-me
gravada na memória não propriamente pelo trauma pois se assim fosse, há muito
que a teria esquecido. Acontece que nesse dia a Itália e a França jogavam a
final do Mundial de Futebol e mal consegui ver o jogo apesar da tripa me ter
poupado no momento da memorável cabeçada do Zidane ao Materazzi!
*Desenvolvimento de
um texto antigo
Comentários