Valeu a pena, escola



Se uma cadeira pendurada pelo Paulo do lado de fora da janela da sala A9 do Liceu de São João, pelo 10º ou 11º ano, não fosse suficiente para depurar o essencial do acessório das memórias escolares, os pentelhos que o Tadeu soprou para o cabelo da Andreia (9º ano, talvez?), depois de os amontoar na mesa que deveria ser de trabalho, decerto varreria qualquer efeméride mais séria como um exame, um professor ou uma visita de estudo.
Para lá das questões académicas, da cultura que adquirimos, da paleta humana que nos enriquece, da abertura da vida às oportunidades e da liberdade que a escola nos oferece com todas estas dádivas, o essencial das recordações que restaram foi tudo o que não contribuiu para a aprendizagem e nesse papel, o Paulo e o Tadeu assumiram um protagonismo de relevo.
Conheci-os em 93 quando, no 7ºC, “inaugurámos” a escola de Alapraia. Em todas as turmas de todas as escolas de todos os lugares em todas as gerações existe um ou outro elemento a quem cabe cumprir o papel de cómico. A única excepção acontece quando a turma se esgota nos “marrões”, profissão para onde eu às vezes descaía. Tive a sorte de ter não um mas dois “animadores culturais” para nos resgatar do tédio que era a escola entre os intervalos: o Paulo e o Tadeu.
Na Alapraia, houve um tempo em que o Tadeu se passeava com um boné vermelho da Telepizza com os “z”s rasurados, substituídos por um duplo “s” cuja graça estava não apenas no à vontade com que ele deambulava pela escola assim se fazendo anunciar, como pelo facto de a piada ser suficientemente básica para eu lhe reconhecer o mérito.
[Nota: gosto de piadas básicas e de piadas ordinárias; não necessariamente non-sense, mas piadas que muitos (snobs?) consideram vulgares ou “de homem”]   
Por artes mágicas (acredito que a propensão para o disparate se concentra em torno de quem o procura) o Tadeu descobriu que as portas das salas de aula não eram compactas: dois palmos para cima e um para a esquerda partindo da maçaneta e tínhamos um ponto oco… um murro e já está: buraco na porta! Naquela idade, não havíamos ainda apreendido a força que uma piada vai perdendo quando repetida pelas portas fora, mas ao terceiro soco, a série de pugilato terminou pois o Tadeu não se apercebeu da aproximação da professora Amália para a aula de Inglês. Apanhado, olhou para a professora e a única reacção que lhe saiu foi de uma honestidade desconcertante: sacudiu a mão agarrando-a de seguida, acompanhando o gesto com um Au! cuja leitura se abre a múltiplas interpretações.
O professor de Matemática chamava-se (espero que ainda se chame) José Luzes. Leccionava também na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril, razão porque vinha (creio) sempre de fato e gravata. À entrada para uma aula o Paulo, numa brincadeira inocente, colocou-se em frente ao professor… E se eu lhe puxasse a gravata? diz ele ao mesmo tempo que pega na referida indumentária e lhe aplica leves puxões… Pare lá com isso, diz o professor com paciente enfado (na verdade ele deve ter dito Pare uá com isso – os “l”s não eram pronunciados). Não só não parou como, com a mão livre, a direita, inicia uma sequência movimentos simulados de ameaças de estaladas ao professor nunca lhe tocando, obviamente, na face… até cair o “obviamente” logo seguido do “nunca”, restando o estalido do único chapadão que eu alguma vez vi um aluno disferir a um professor. O que se seguiu foi maravilhoso: o professor reage em três passos de corrida atrás do Paulo, que entretanto se afastara a pedir desculpa, e acerta-lhe um pontapé nos glúteos (creio ser este o nome que se dá à peida nos dias de hoje) ao mesmo tempo que sobrepunha aos insistentes (e sinceros) pedidos de desculpa do Paulo um O menino está-se a portar mal (mau – sem “l”s), repetido enquanto todos entrávamos em silêncio na sala de aula, azamboados pela surpresa. Já na aula, e quando a mesma ainda não tinha começado, o Paulo veio até ao meu lugar e disse-me que não tinha feito de propósito (e era daquelas afirmações que se via ser verdade). O professor percebeu e, do estrado onde se encontrava, mandou-o para o lugar dizendo apenas Vá, vá-se uá sentar e não se faua mais nisso. Se fosse hoje, algum camelo teria filmado a cena, o Paulo iniciaria de imediato um programa de acompanhamento por uma “equipa multidisciplinar”, o professor seria irradiado não sem que antes os pais do Paulo tivessem ido à escola pedir satisfações enquanto as redes sociais e o jornalismo se encarregariam de simular mais um Prós e Contras de verborreia proferida pelos paladinos da moral e provedores da indignação que, à falta de outro mérito, encontram o seu público na visibilidade instantânea.
O outlier desta banda desenhada foi o Mauro em mais uma cena histórica. Por vezes nos intervalos, não saiamos todos da sala quando tínhamos dois tempos em Educação Visual. Não me lembro do nome da professora o que, para o caso, até é melhor, mas lembro-me de estarmos muito poucos na sala quando, do grupo do lado, o Joquinha me chamou para apontar o Mauro que, com a mão descrevendo o movimento pendular horizontal que se lhe prolongava pelo braço, afagava a peida da professora (aqui era mesmo peida: não há “glúteos” que lhe façam justiça) quando esta, com ela esticada, se encontrava debruçada sobre o trabalho do Jorge (não estou certo de que fosse o Jorge embora ele pertencesse a esse grupo) a explicar-lhe uma recta, uma circunferência ou outra merda qualquer. Deixei logo o que estava a fazer à medida que o Mauro avançava na amplitude dos seus movimentos, percorrendo uma área considerável dos jeans arredondados da professora de Visual. A propensão para o risco socorre-se muitas vezes da irracionalidade do apostador em não discernir o momento óptimo para parar: a mão já não satisfazia o Mauro que pegou no lápis e começou a percorrer ao de leve o relevo que se adivinhava por trás do tecido… tivesse ele parado o devaneio galopante que o hipnotizara e fizesse uso da razão, talvez concluísse que nas aulas de Educação Visual os lápis costumam estar afiados para os riscos vincarem o papel com maior precisão… e não foi preciso muito para o O QUE É QUE ESTÁS A FAZER?! ter rasgado o silêncio de que a sala se cobrira para assistir às investidas do Mauro. A régua mais próxima sobre a mesa foi agarrada pela professora que disferiu automaticamente uma série de reguadas esbracejadas sobre o Mauro (ia dizer “sobre o pobre Mauro” mas isso foi o que achei na altura: hoje eu seria considerado um machista, propagandista de assédio por isso, corrijo: “sobre o cabrão do Mauro”). PEDE DESCULPA! JÁ! ... e ele pediu, não se livrando contudo de um castigo que não me lembro se incluiu um ou dois dias de suspensão ou apenas trabalhos numa sala à parte. Para ele aprender que aquilo não se fazia!
Um dos episódios mais marcantes deu-se novamente com a professora de inglês (se algum dia ler isto professora: desculpe…). Enquanto esperávamos pela entrada na sala, o Tadeu abre a porta e mostra-nos o quadro duplo repleto de quatro palavrões, cada um ocupando mais ou menos um quarto do espaço. No canto inferior direito estava uma “dedicatória” para a professora. Esta situação foi tão absurda por se dar com uma professora não merecia esta atitude. Para mais, havia professores a quem o bonito gesto teria sido bem esgalhado, mas não àquela professora, por quem aguardámos expectantes, sem apagarmos uma letra que fosse do giz que havia sido gasto. Entra a professora e a sua reacção mostrou-me que aquilo era bem mais grave do que os meus catorze ou quinze anos não foram capazes de compreender… Era aula de entrega de testes, o que por si só era sinónimo de “não se fazer nenhum” mas a professora disse que não entregaria os testes enquanto o responsável não se acusasse. Já estava assim respondemos nós, pelo que foi chamada a professora da aula anterior que de imediato rebateu a nossa teoria dizendo que tinha sido ela a última a sair e que havia fechado a porta à chave… um culpado entre nós… os suspeitos do costume fizeram-me olhar de imediato para o Paulo assim que nos sentámos e, encolhido como estava na cadeira, não tive dúvidas; com o Tadeu pareceu-me não ser nada com ele. Os minutos foram passando e nós não recebíamos os testes, o que não me preocupava por demais pois tal significava que na aula seguinte voltaríamos a ter folga. A dada altura, e depois de apelos e reclamações por parte de alunos que naquele dia “queriam trabalhar”, o Tadeu vira-se para o Paulo e sai-se com esta: Paulo, como é que é? Dizemos? É isso Tadeu: a escola ensina-nos a matéria mas não a inteligência.
Avançámos para o secundário mas a maturidade continuou na infância. Ramificaram os caminhos por onde seguimos mas acabei na turma do Paulo. Eramos mais velhos, pelo que o espaço para desculpas perante o disparate apertava. À imaginação pedia-se que refinasse a asneirada sob pena do sistema descartar o prevaricador (na altura o ensino secundário não era obrigatório).
Eh, é o Paiva! Estamos fodidos! disse o Paulo ao ver o professor subir a escadaria do pavilhão A antes da primeira aula de Português no 10º ano. Ele tinha ouvido falar do professor Joaquim Paiva, quer na escola quer fora dela (era seu vizinho) enquanto eu nada conhecia dele. O professor passou pela turma cumprimentando-a simpaticamente e entrou na sala. A minha opinião a respeito da sua “rigidez” começou a mudar logo ali. Na aula, a primeira coisa que que ele disse depois de se apresentar foi que à entrada, ao passar por vocês ouvi umas coisas… e não gostei do que ouvi! Imaginei como eu reagiria se o mesmo tivesse acontecido comigo à chegada a um novo grupo… Eh, é o António! Estamos fodidos!... quem ficava fodido era eu!
A professora Cristina, de Matemática (10º e 11º ano), também foi vítima, ainda que ao de leve, das cogitações do Paulo quando ele, depois de educadamente levantar o braço para falar na aula se dirige a ela como stôira… continuando a expor a dúvida como se nada fosse. Claro que ela não deixou passar dando-lhe a oportunidade para se retractar Desculpe, o que foi que disse? ao que ele enfatizou Eu disse STÔIRA! Foi para a rua.
À medida que a idade foi construindo a censura, as brincadeiras foram perdendo a força e a piada que a imaturidade lhes conferia. Se eu disser que gostava da escola, estaria a mentir pois nem a escola nem a universidade me trouxeram aquilo que o mundo profissional me ofereceu: a possibilidade de ter tempo livre verdadeiramente de qualidade, sem trabalhos de casa, estudo para testes ou preocupações com notas, entregas de trabalhos ou médias de acesso. Quando o professor Humberto, que me deu matemática no 9º ano, nos disse uma vez que os nossos sonhos iam diminuindo à medida que escalávamos os anos de vida, duvidei. Hoje concordo com ele apenas parcialmente pois se é verdade que a flexibilidade para fazer o que quiser com a minha vida já não é a mesma, a verdade é que a gestão do tempo é, paradoxalmente (ou talvez não), um dos maiores ganhos que adquiri desde que deixei a escola e essa liberdade não é negociável (salvo por necessidade). Por isso não sinto grandes saudades da escola senão de alguns professores, amigos e destes intervalos em que o Paulo, o Tadeu, o Mauro e outros de quem me esqueci ou omiti, puderam valorizar a experiência que era ir à escola. Porque as aulas, poucas histórias deixam para contar.

Lisboa, 30 de Agosto de 2019

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