Aconteceu na Mouraria


Alinhavava palavras num caderno rasurado para apressar o tempo enquanto olhava a vertente ocidental da colina do castelo, sentado numa esplanada do Martim Moniz num fim de tarde de Outubro. Era mais um daqueles dias em que o sol do meio-dia derrama calor sobre a cidade fazendo cair a pique a temperatura à medida que o dia se vai dissipando na noite.
O meu destino estava ali, algures entre aquelas casas na encosta virada a poente, um lugar que já antes visitara mas que há muito deixara de frequentar (não sei se posso dizer que alguma vez cheguei a frequentar: caímos tantas vezes na ilusão de que as coisas se passaram da forma como hoje as vemos e não como aconteceram de verdade). O texto – um poema – a custo foi ganhando forma e nem os salgados e o bolo que me serviram de jantar antecipado foram capazes de alimentar a inspiração; creio ter sido antes o tempo, a insistência e o enquadramento que me envolvia a salvar o texto, múltiplas vezes riscado, corrigido, alterado, até ganhar a forma de algo que não me deixasse na completa angústia da insatisfação.
Ao fim do que me pareceu uma hora (mas podiam ter sido duas ou menos de meia), fui pagar. Pela conversa com o grunho que empreendia um esforço hercúleo para largar as parcas gotas de simpatia que a sua personalidade albergava percebi, pelo preço, que estava a ser roubado… o preço do turismo. Recebido o troco, contei as moedas com a clara convicção de que fora espoliado, agora a sério, sugerido por uma espécie de sexto sentido mais alimentado pelo preconceito do que por um particular acerto que eu possa ter para palpites deste género.
Faltava um euro!
Voltei atrás e, entre a negação e a gaguez, o bronco lá pagou o que me devia, tendo eu perfeita consciência de que ainda assim, o valor cobrado incluía muito mais do que o que eu consumira.
Iniciei então o trajecto a pé rumo ao mais belo bairro da capital, situado entre dois bastiões – a Graça e Alfama – descaracterizados pelo turismo e pela especulação. Já na cidade havia mais noite do que tarde quando, passando o Hotel Mundial, virei à direita para, depois de percorrer a curta distância, velha conhecida, meti pelo Beco dos Surradores. Passei em frente ao Zé dos Cornos e subi a escadaria onde a fauna típica daquela zona da capital pontuava dispersa, à medida que a azáfama da praça ficava para trás e eu entrava no silêncio alcançado pela progressiva fuga do calendário aos meses de turismo e da cidade em festa.
Algumas esplanadas estavam compostas – nada comparado com as filas do Verão – e fui seguindo pela ruela onde quase me sinto em casa (a Mouraria deve ser o único bairro de Lisboa onde isto acontece), o Beco das Farinhas. O som que me chegava das janelas abertas da Baldracca, remeteu-me para uma outra janela, temporal, não muito larga, em que frequentei algumas vezes o local. Pouco depois, subi o Beco do Jasmim, o mais estreito de todo o caminho até desembocar no Largo da Achada, uma bonita clareira renovada com uma fonte ao centro onde me sentei a ler Um Escritor na Guerra. Ao fim de três ou quatro páginas, que teimavam em não me fixar a leitura, poisei o livro. Todo o ambiente convidava a apreciar a beleza daquele céu, daquele bairro, daquele largo que a iluminação e o conforto de uma noite em mudança de estação enfeitavam de magia. Como é possível
ser a realidade a distrair-me da leitura quando tantas vezes ocorre o contrário: a leitura, fonte de fuga e de prazer, transporta-me muito mais vezes para longe do meio que me envolve mas naquele momento, o lugar que me acolhia merecia ser sentido por si só.
Da fonte central onde estava sentado, não sei quanto tempo fiquei a olhar para o Largo da Achada mas não devo ter estado embevecido por mais de uns dez minutos pois sei que não tenho paciência para demasiada meditação. Quando fiz menção de pegar novamente no livro, com o tempo a meu favor deixando margem para descrever todos os gestos e acções sem a pressa de um acontecimento futuro que aconteceria daí a uma hora mesmo ali ao lado, paredes meias com o lugar onde me encontrava, entram na praça três indivíduos rasgando a tranquilidade residencial da noite outonal. Dois deles abancam no chão bem próximos de mim enquanto o outro, junto ao murete circular onde eu me encontrava sentado com a carteira, o livro e o telemóvel pousados a meu lado, inicia uns passos de dança ao som de uma banda sonora com que o próprio se acompanhava em voz. Os dois que se haviam lançado para o chão, depois de largarem as pandeiretas e os djembés, espalham um tapete de moedas e notas no chão entre eles e, perante o meu olhar curioso, que se devia mais à vontade de apreciar aquela forma de vida tão errante (quando comparada com a minha) do que ao interesse pelo dinheiro ou pela sua proveniência, sentiram necessidade de me informar, depois de me olharem no seu jeito descontraído, de que eram artistas de rua. O sotaque brasileiro facilitou a pouca comunicação que lhes permiti e as desculpas que me pediram antecipadamente por interromperem a leitura que eu não estava a fazer depressa se dissolveram na contagem dos cobres em pequenos montículos, acompanhados pelas poucas notas – quase todas de cinco euros – que compunham parte do cachet. Disse-lhes que aquele era um sítio calmo para tal tarefa ao que eles concordaram, mas cedo percebi que não me apetecia meter conversa e, para lançar aquelas banalidades, melhor era que estivesse calado.
Mais um quarto de hora e levantei-me, despedindo-me dos artistas. A Casa ainda estava fechada e por isso voltei a abrir o livro para o pedaço de leitura mais profícua da noite ali, de pé em frente à Casa da Achada, à luz de um candeeiro de iluminação pública, com o beco onde nas noites de Verão passam cinema ao ar livre fechado do outro lado da rua (da Achada). Um português fazia conversa de engate em inglês com uma estrangeira enquanto esperavam, também eles, pela abertura da Associação. A hora do evento aproximava-se mas nem por isso se juntava muita gente: na verdade, apenas um individuo se sentou ao fundo, a uns trinta metros, nos degraus em frente a uma casa que dava para o largo, e um outro sujeito deambulava em redor da Casa. Grafitis e cartazes assinalando as celebrações dos dez anos do Centro Mário Dionísio (o outro nome da Casa da Achada) forravam a parede em frente, junto ao beco do cinema.
Quando a porta da Casa se abriu, pelas nove e vinte, fiquei a saber que aquela era a primeira noite em que passariam o filme no interior: era a primeira segunda-feira de Outubro. Apesar de há muito eu querer ler o livro do autor austríaco, não quis perder a oportunidade de ver pela primeira vez um filme do grande realizador alemão, mesmo que só venha a ler (e vou) a obra mais tarde.
Quanto à apreciação do filme, este texto vai demasiado longo para incluir todas as considerações que a obra merecia, mas a minha carta dessa noite está inscrita nestas palavras. Tão ou mais importante do que o objectivo último a que nos propomos, é o modo como valorizamos o que envolve a experiência: li, escrevi e contei o dinheiro de um dia de trabalho com um trio de artistas de rua. Ainda que o filme fosse mau, a noite na Mouraria já teria valido a pena.

Lisboa, 8 de Outubro de 2019


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