Duas gravatas e uma amizade



Antes de os telemóveis e da internet terem facilitado o contacto, aproximado as pessoas e apurado o espírito controlador dos mais inseguros, dois homens – um português, gordo e baixo, e um inglês, alto e magro (?)[1] – encontraram-se pela primeira vez no aeroporto de Heathrow em Janeiro de 1986. Nunca antes se haviam visto.
O gordo havia-se demitido de chefe de produção de uma fábrica de tintas da Maceira para iniciar um negócio de higiene feminina numa multinacional inglesa na região de Lisboa!
O alto geria a empresa desde Inglaterra, com sucursais por todo o país e em diversos pontos do planeta, encontrando-se a mesma em expansão. Portugal era o lugar que se seguia.
Sem certezas se o voo iria ou não atrasar, sem se conhecerem, sem nada controlado até ao momento em que, após apertarem as mãos, iniciariam uma colaboração que se prolongaria por vinte anos e uma amizade que se estenderia por muitos mais – trinta e três – o gordo e o magro reconheceram-se pelas gravatas que haviam combinado levar, ambas com o emblema do grupo empresarial detentor da empresa que o inglês há muito representava e que o português se preparava para servir. À chegada ao aeroporto, o gordo repassou o olhar pelos britânicos que ora aguardavam os entes queridos, ora empunhavam placas com os nomes de quem esperavam sem conhecer. Até que – imagino eu – deve ter estacado no sorriso aberto de sobrancelhas arqueadas que o magro tantas vezes afeiçoava a quem o rodeava e acenou com a gravata que lhe havia sido emprestada para o reconhecimento. O mais alto devolveu o gesto e, depois de se cumprimentarem, iniciaram ali a longa e prolífica colaboração que sedimentaria pelos anos seguintes.
Se “o que nasce torto tarde ou nunca se endireita”, podemos atestar a veracidade do contra recíproco – “o que nunca se entortou, certamente que nasceu direito” – e esta forma de acenar ao inicio de uma bela amizade, bailando as gravatas num tempo em que os emojis não existiam para criar personas escondidas à margem do poder único do contacto pessoal, assemelha-se aos blind dates dos dias de hoje. Afinal não estamos assim tão distantes desse tempo, contudo, não deixa de iluminar uma imagem bonita: o acenar de gravatas nas chegadas de um aeroporto. 
Aos quarenta anos a vida mudava para o mais baixo. O alto, sendo da mesma geração (quatro anos a mais não foram suficientes para os desfasar de memórias colectivas que partilhavam e de formas de ver o mundo onde coincidiam em muitos pontos). A diferença residia na seriedade do português por oposição â bonomia do inglês (curioso desajustamento entre um latino e um british).
A família do português juntou-se-lhe meses mais tarde, em Agosto desse mesmo ano de 1986 – a mulher e os dois filhos – e a empresa pôde arrancar a todo o gás: ele como gerente, a mulher como chefe de escritório e uma condutora (hoje chamam-se condutores/as-distribuidores/as, técnicos/as de montagem, etc…).
Iniciar um negócio naquela época possuía uma beleza que hoje muitos já esqueceram ou nunca chegaram a conhecer: com pouco dinheiro para o arranque, cinco mil contos de entrada, aos quais chegaram outros cinco mil de reforço meses mais tarde, era necessária contenção nos custos e, alinhados como estavam, o gordo e o magro levaram a máxima à letra: numa das primeiras visitas do segundo a Portugal, quando os filhos e a mulher do primeiro já moravam com ele nos arredores de Lisboa, a filha mais nova (na altura era a mais nova: a outra só viria dois anos mais tarde) mudou-se para o quarto do irmão mais velho para que o inglês pudesse pernoitar no país do português sem a empresa despender um centavo (imperava o escudo). Em rigor e em abono da sinceridade, a arte portuguesa de bem receber e a familiaridade com que abraçamos aqueles que nos parecem gente de bem desempenhou um papel talvez até mais importante, mas nove em cada dez pessoas que contarem esta história agarrar-se-ão à poupança, sacrificando a amizade que então se formava.
A empresa cresceu, tal como a união entre os dois homens. As visitas da família do magro a Portugal uniu os nove elementos (o inglês tinha um filho e uma filha e o português já havia, com a mulher, fabricado a terceira cria). Mais tarde, a empresa, desde Inglaterra, como forma de reconhecer o esforço do marido e da mulher que em Portugal montaram um negócio de raiz à custa de sacrifício pessoal, familiar, temporal e sabe-se lá que mais, ofereceu viagens para toda a família lusitana ao país de Sua majestade: no total, foram quatro as vezes que a família do português usufruiu de viagem e estadia no país do inglês, três delas em Londres, convertendo esse destino num lugar especial para todo o sempre para os filhos do casal (pelo menos para o mais velho)
No entanto, foi do Liverpool que o filho do mais gordo se tornou adepto, por influência do mais magro, apoiante fanático do clube da cidade dos Beatles: um equipamento completo (que tinha o patrocínio da Candy na equipa onde pontuavam Ian Rush, John Barnes e creio que Peter Beardsley), dois cachecóis e um adepto para a vida foi parte do legado que o mais alto semeou no filho do mais baixo (hoje, resta apenas um cachecol que ele guarda com carinho).
O inglês, tal como o português, era de Direita: Tatcheriano, para ele os franceses eram os frogs e os espanhóis os degos. Creio que gostava de cultivar essa imagem pois os negócios que fazia com todo o mundo desmentiam qualquer forma de discriminação, incongruências óbvias em quem se entrega às generalizações ou aos extremismos, sejam eles à Esquerda ou à Direita. Além disso, a sua alegria natural desarmava quaisquer palavras com que ele tentasse compor uma imagem sua sem grande adesão à realidade.
La plume de mon oncle est sur la table de ma tante era a única frase que repetia em francês ad eternum; em português, sabia dizer batatas fritas, salada de frutas, gelado, por favor e obrigado.
Com os netos, veio outra vida: uma vida de poder como ele gostava de explicar quando visitava o português e a sua família com a mulher. Me and Thomas, we have the “power”! ao que a mulher revirava os olhos dizendo-lhe com uma leve palmada: Oh! Stop it!. Respondia ele: But it’s true! numa infantilidade mais saudável do que uma vida inteira de veganismo em meditação.
O Norman morreu no passado mês de Setembro com setenta e oito anos e o meu pai ficou triste.
Uma gravata igual àquela através da qual ambos se reconheceram permanece pendurada no guarda-fatos do quarto dele, em Portugal, junto a esse outro quarto onde há trinta e três anos o Norman dormiu na sua terceira visita ao nosso país, a nossa casa.


Caparide, 19 de Outubro de 2019



[1] Não me recordo se o inglês desta história era daqueles falsos magros com barriga mas, para efeitos de contraste literário, permanece magro pois é assim que o vejo.

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