Toda a gente se casa
na merda do Verão!
Recuando ao principio
(que é por onde as coisas devem começar), a tortura começa muito antes do dia
da festa, quando recebemos o convite e a primeira coisa que importa é encontrar
a maravilhosa nomenclatura para a indumentária: partimos logo da pantominice em
não descortinarmos modalidade alguma escrita em português (alguns engravatados
padecem da mesma cagança) no entanto, salivo por descobrir uma simples
palavrinha de seis letras, em inglês, sem a bosta no caminho a conspurcar a
marcha como smart, business ou chic… somente C-A-S-U-A-L.
Não espero que casal algum tenha a ousadia de deixar os convidados à vontade ao
ponto de colocar o sinal do caminho para o paraíso – sporty – mas o casual
já me satisfaz.
O segundo aspecto
relevante num casamento é a data e aí, vai quase tudo cair no Verão. Dei a
entender na introdução o que me parecia a escolha desta época do ano para uma
festa tão atarefada (a avaliar pelo corrupio de vestidos, penteados, sapatos,
carteiras e maquilhagens) mas tal período não teria mal se o casual
fosse de facto casual. Acontece que, quando telefonamos ao noivo ou à
noiva para confirmar – A roupa é ‘casual’, certo? – o silêncio do outro
lado lança o desconforto de quem começa logo a antever que o casual é só
para inglês ver. Está visto: fato e gravata no Verão!
O último ponto a ter
em conta é a mesa: tem gente conhecida ou apanhamos com as “sobras”? Claro que
depende da proximidade ao casal mas faz toda a diferença ficar com gente
interessante (conhecida ou não) ou chata pois a comida já sei que mal lhe vou
tocar: a sopa nem aterra à minha frente na mesa e dos pratos principais, elejo
normalmente o de carne, sem dispensar o “tira-gostos”. Obviamente que antes da
refeição já me precavi com as entradas e as bebidas que as acompanham, pois isso
sim, é matéria que raramente me desilude.
Enquanto degusto a
carne sem grande fome nem vontade de saciar aquela que se poderá formar por
evitar grandes comezainas, acompanha-me habitualmente um bom vinho – devo
confessá-lo – ao mesmo tempo que uma mesa repleta de sobremesas e outra de
queijos se riem e choram para mim: tentam-me e gozam-me pela tortura em que me
vêem quando sou obrigado a dar conta do prato quando me satisfaria apenas com
as entradas e as saídas dispensando todo o entr’acte de uma mesa
entediante.
Terminado o fastio
forçado por uma ementa e uma actuação que raramente me apetece, aparece a
sobremesa, vistosa mas merdosa, introduzindo todo o colorido que nos acompanhou,
entre frutas, doces e queijos, ao longo da refeição.
Adio os cafés e
atiro-me às sobremesas antes de todos os outros convidados, geralmente mais
educados, uma vez que não só despacho a comida com uma certa celeridade, como me
poupo propositadamente para guardar espaço para o maravilhoso carregamento de
açúcar que a brigada dos saudáveis nos querem censurar, a nós gulosos, nos dias
de hoje. Efeito secundário: vejo-me livre da conversa de circunstância na mesa
redonda e entro no paraíso… é atafulhar o prato de sobremesa com quantos
sortidos conseguir construir, em área mas também em volume, numa tentativa de
“provar de tudo um pouco” para a segunda intifada se mostrar já depurada do
resíduo de doçaria incapaz de alcançar os patamares mínimos de qualidade.
Acontece neste momento eu partir para a selecção que interessa com dois handicaps…
um ligeiro enjoo que me recuso a admitir a começar a formar-se nas profundezas
do meu estômago, e a concorrência dos alarves que encheram o bandulho com o
prato de peixe e de carne já a fazer-se sentir.
Confirmo o enjoo
antes ainda de terminar a fina flor da doçaria!
E eis que entra o
exército da salvação do colesterol para neutralizar as doses cavalares de
açúcar que transbordam do meu sangue, alargando veias e artérias de um jeito por
forma a que, naquele instante sem freio, posso confessar ser uma das pessoas
mais doces do mundo!
Os soldados de tão
aguardado exército têm nomes pelos quais salivo, especialmente naquele momento
em que o esófago se encontra congestionado de açúcar, chocolate, creme de
pasteleiro, natas, mousses, bolachas e leite condensado até à boca: Ilha,
Serra, Nisa, Azeitão, Manchego, Gouda, Roquefort,
Flamengo, Brie, Camembert, Gorgonzola, Emmenthal…
O chefe de estado
maior do exército da salvação do colesterol é, obviamente, o queijo da Ilha, ao
comando de uma série de generais, brigadeiros, tenentes, coronéis e capitães,
até terminar nos praças formados por pão, tostas e bolachas que em conjunto me
colocam em confronto com um dilema de difícil resolução: o desenjoo e a
obtenção de novas vidas com que me reergo da má-disposição, agora carregadinho
do abençoado colesterol que acabou de diluir todo o açúcar que pouco tempo
antes me levava a nem conseguir olhar para os doces. Pouso o olhar na mesa
semi-desbastada das sobremesas e sinto como se o Paraíso se tivesse reerguido
enquanto me penitenciava no Purgatório do queijo. Nova intifada seguida de
outra desintoxicação com os mais belos queijos do mundo! O ciclo prolonga-se
pela tarde e noite até ao momento em que uma bolachinha a mais seria suficiente
para eu devolver à proveniência o bolo alimentar composto por uma parcela muito
assinalável do açúcar e gordura que tivesse ingerido no dia da festa. Claro que
por essa altura já a gravata se havia libertado da forca de modo a permitir a
passagem dos produtos alternados pelo pipeline até ao grande depósito de
armazenagem.
Despedidas, muitas
felicidades e “havemos de combinar qualquer coisa” e está despachada a festa. O
estômago proeminente comprova que o saldo me foi positivo: teria que ter
oferecido um presente muito mais valioso para ter ficado a perder mas quando
tento entrar no carro, assalta-me sempre a sensação de que o bólide encolheu
para um Smart ou mesmo para aqueles mata-velhos que não necessitam de
carta para fazer estragos na estrada… o eixo do volante parece ter esticado e
encostado o arco às costas do assento… tenho que puxar o banco atrás para
conseguir entrar e mesmo assim tenho dificuldade em me dobrar… entro então na
fase do arrependimento, que não seria verdadeiro sem o habitual praguejar… Crlhs
ma Fdam! P’ra que é que comi que nem uma besta! Fds! É sempre a mesma mrda!
A culpa óbvia deste
efeito que se prolonga por uma noite mal dormida e pelo dia seguinte a pão e
água é do queijo, esse dramático ingrediente que permite a minha entrada na
reacção em cadeia doce-queijo-doce-queijo-doce-queijo… até ao limite da
elasticidade dos meus órgãos, da saturação do meu sangue e das dimensões do habitáculo
da minha viatura. De qualquer forma, não fosse o efeito dramático por ele
causado, e não sei se resistiria até ao fim a um evento tão… bonito. Bonito,
bonito… deve ser a noite de núpcias.
Caparide,
10 de Novembro de 2019
Marinha
Grande, 16 de Novembro de 2019
Comentários