Rosa Negra

Não conheço a Rosa.
Nunca falei com ela, nem sequer ao telefone ou por videochamada.
Alguns meses depois de a minha sobrinha Maria Luísa nascer (não tenho outra mas nomear as pessoas de quem falamos num texto traz consigo alguma familiaridade) a minha irmã Maria regressou a Luanda e, ante a necessidade de voltar ao trabalho, entrevistou algumas pessoas para tomar conta da filha. A Rosa foi seleccionada.
Para lá das inseguranças do costume, que fazem parte do rol de sintomas da síndrome do primeiro e único filho, e que incluíam aparecer em casa mais vezes, choradeira por deixar a fifi umas horas ou colocar um sistema de videovigilância que captou a Rosa a educar a Luísa e que levou a minha irmã a chamar a atenção da mulher causando em ambas uma dose não despiciente de choradeira adicional (além da que ocorre dentro dos parâmetros normais da síndrome); para lá de todas essas dores de crescimento, a Rosa e a Luísa foram-se afeiçoando ao ponto de a miúda chegar a chorar quando a minha irmã chegava a casa e era hora da Rosa partir para ir cuidar da sua família.
Tudo o que me chega sobre a Rosa é por interposta pessoa mas, tomando a informação fidedigna, julgo não errar muito quando, ao saber que a Rosa se faz anunciar à minha sobrinha (que tem hoje um ano e dois meses) com um LUISINHAAA! A ROSA CHEGOU! assim que entra em casa para tomar conta da miúda, brincar com ela e ainda tratar da lide doméstica, tenho-a como uma pessoa de bom coração. Ela toma conta da minha sobrinha e basta isso para eu querer que ela seja uma pessoa de bem e o melhor para a sua vida.
Durante os cinco dias da semana, a Rosa passa grande parte de cada um deles com uma filha que não é dela. Tem três filhos mas é com a Luísa que partilha a maior parte do seu tempo. É um descanso para a minha irmã e quero acreditar ser um trabalho de que a Rosa gosta, ao desempenhar um papel importantíssimo na vida da miúda e da nossa família, que, espero eu, a Luísa um dia reconheça e agradeça.
Por tudo isto, um dia em que a Rosa esteja doente é um dia que causa transtorno à minha irmã uma vez que, sozinha em Angola com uma bebé, ou tem que a levar para o escritório ou tem que ficar em casa. De qualquer forma, leva-se (digo eu que a mim não me custa nada). Mas é só quando a doença da Rosa se prolonga por dias que começamos, pese o aumento do transtorno, a atentar ao que se passa do lado de lá, com a saúde de alguém que nos dá tanto, e não apenas com o facto de a minha irmã ter que acordar mais cedo para tratar da miúda e levá-la consigo para o trabalho.
Na semana passada a Rosa adoeceu e foi para casa.
[AVISO: a Rosa não vai morrer no final deste texto]
A conjuntivite obrigava a um afastamento da Luísa devido ao perigo de contágio e, admito eu, a própria Rosa não se sentiria bem em ir trabalhar nessas condições.
A minha irmã foi mandando uma ou outra fotografia da miúda no escritório e ontem enviou uma com ela a dormir, dizendo que estava estoirada. Perguntei pela Rosa e ela respondeu que afinal não devia ser uma conjuntivite: já tinha perdido uma vista e encontrava-se naquele momento no hospital para tentar salvar a outra!
O choro de agora nada tem a ver com o da síndrome, tão injustificado parece esse perante a gravidade de uma situação que começou na simples conjuntivite de uma mulher com três filhos sem acesso a cuidados de saúde minimamente decentes num país que, por muito que consideremos irmão, não deixa de estar bem no centro do terceiro mundo. Em Angola, ou se é saudável ou se é rico, segundo a minha irmã. Se alguém como a Rosa tem o azar de a saúde fazer greve, é um azar daqueles. A minha irmã pagou-lhe as consultas e pagará a eventual operação de que necessitará, mas a probabilidade de já ir tarde é grande.
Neste momento a Rosa não toma conta da Luísa, mas eu gostava muito que voltasse a cuidar dela. Pela miúda, mas sobretudo pela Rosa. Se uma ama pode, com maior ou menor dificuldade, ser substituída, a saúde de uma Rosa não pode. Uma mudança destas é brutal e tanto mais desconsoladora quanto não a conseguimos dissociar das condições precárias em que as Rosas que tomam conta das nossas crianças vivem. Tivesse ela dinheiro e vivesse num país diferente e provavelmente todo este transtorno (o da Rosa, bem mais limitador do que o da minha irmã) seria evitado.
Ontem, mais tarde, já depois do embate do primeiro anúncio, a minha irmã falou com a Rosa e a médica acredita que ela pode recuperar a visão em ambos os olhos…
Neste momento, o outro aspecto positivo além da esperança na recuperação da Rosa é o facto de, pese a Luísa poder sentir a sua ausência, embora não num grau acentuado, não tem noção, como nós temos, da gravidade da situação em que a ama se encontra. Se a Rosa recuperar, desejo que a miúda venha a saber desta história como um episódio que atravessou a sua infância sem que ela tivesse dado por isso e não como a situação que afastou a Rosa do convívio diário entre ambas.
Eu não conheço a Rosa mas quero muito que ela recupere, mesmo que não seja para continuar a acompanhar a Luísa. O que fez até hoje pela minha sobrinha é suficiente para ter a minha gratidão (mesmo que nunca o venha a saber).
As Rosas negras são raras e por isso mesmo, muito difíceis de encontrar. São mais sensíveis do que as demais, daí ser necessário cuidar delas de uma forma especial. Por formarem uma das mais belas obras da Natureza, há que apreciá-las, valorizá-las e sobretudo, preservá-las, junto a nós ou onde quer que elas se sintam bem.

PS (7 de Dezembro): A Rosa está a melhorar e já quase recuperou a visão. Talvez volte para junto da Luísa em Janeiro.

Marinha Grande, 16 de Novembro de 2019

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