Silêncio


Deliciava-me ainda antes de rodar a chave e ouvir o silêncio sobrepor-se repentinamente ao ruído do motor a que a viagem me habituara sem que eu desse por isso, a não ser nesse instante mágico em que o desfazer da ignição me devolvia ao momento inicial, quando nada interferia entre o silêncio que eu abraçava no interior do carro e os sons envergonhados que a noite sussurrava.
A quietude que me invadia ao rodar a chave do carro depois de o estacionar, longe ou perto da entrada do prédio – não importava – compunha os acordes do meu trecho favorito do dia, uma estrepitosa Cavalgada que encontrava naquele epílogo a sua razão de ser, como se ele – o dias – tivesse sido composto para ver aproximar-se o momento em que eu chegava a casa e, cortando com o motor e o rádio num uníssono pontual, me deixava embalar no interior apagado, enegrecido da família de outro tempo, num agradável aroma agridoce a plástico, a antigo e a vapores de ambientador há muito gasto mas que permanecia eternamente a enfeitar o interior do veículo, alimentado pelo ar quente bafejado das profundezas da viatura, que tanto me aquecia nas gélidas noites de Inverno como desembaciava sem sucesso os vidros nos dias mais húmidos da estação. O ar aberto (ou fechado, dependendo se a sabedoria vinha da mecânica ou do senso comum) ia afogando o motor com pezinhos de lã até à manhã em que, depois de rodar insistentemente a chave e o veículo nem sequer se engasgar, eu vociferava uns quantos impropérios sabendo perfeitamente que havia combatido desproporcionadamente as frias manhãs quando saía cedo de casa para pegar ao trabalho.
Gostava de olhar para aquele silêncio como se descobrisse algo pela primeira vez no final de cada dia, como se do contraste entre a azáfama do trânsito, do escritório e das vozes e a saborosa consciência de que toda essa loucura se escoava naquele enterro final do ritmo que me baralhava a jorna nascesse algo revelador.
Aproveitava então aqueles minutos em que não fazer nada me sabia tão bem e relembrava, relia, revivia mensagens recebidas nesse dia, reinterpretava-as iludido do jeito que queria que estivessem escritas e ali, sozinho na quietude acolhedora de um carro estacionado, mal iluminado por um candeeiro de iluminação pública, próximo ou distante – uma vez mais: não importava – iludia a realidade distorcida por aquelas palavras, pelo sentido que eu lhes dava, e isso tinha um nome: era assim que eu sonhava.
Por vezes a chuva cortava o momento ao crepitar sobre o capot e todo o ambiente se vestia de Literatura, Cinema, Pintura, e de todas as artes capazes de me elevar para outro mundo, aquele para o qual eu pretendia abrir passagem quando me apropriava das palavras com que distorcia o espaço e o tempo numa relatividade geral, e o silêncio polvilhado pela cadência dos pingos, embrulhado no calor residual do ar quente que o motor já não lançava, me embalava no sonho do dia seguinte, nas palavras que se seguiriam e que eu dobraria para moldar num novo sonho até que a realidade me mostrasse quem tinha razão, se ela, se eu.
Não me demorava muito nestes interlúdios pois os sonhos querem-se curtos para permanecerem na memória. Nunca contava os minutos – o mostrador do relógio estava apagado – mas não deviam passar mais de dez até que eu me decidisse a abrir a porta e o ar a correr pela rua semi-deserta me devolvesse os arrepios do que me esperava. E era nesse ambiente que eu tinha que sobreviver, e sonhar, e construir o sonho entre tremores de vento e dúvidas, incubados no silêncio do meu carro inerte enquanto tudo à minha volta rodopiava sem que eu fizesse caso pois naquele momento, as palavras bastavam para me sentir vivo.  
  
Caparide, 18 de Novembro de 2019

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