Ténis novos… ou a nostalgia de pisar merda como saudosa reminiscência do tempo de infância


Os saldos e um cheque oferta generoso levaram-me até à SportZone para substituir os ténis de trekking que, ao longo de dez (?) anos fizeram inúmeras caminhadas pela serra de Sintra e dois Caminhos de Santiago.
Mais desconto menos aldrabice, eu sabia que não iria pagar um cêntimo e quando assim é, relaxo um pouco e, se bem que o limite que havia estipulado para o valor dos sapatos antes de saber que me iam custar “bola” permanecesse inalterado, deixei de me importar com o facto de poder comprar uns ténis que antes de saldos custavam X, e em saldo continuassem a custar X (o clássico logro das lojas em época de descontos).
Uma vez que haviam descontinuado a marca com a qual eu me havia dado bem, tive que partir à procura de uns sapatos confortáveis, anti-transpirantes, anti-bolhas, impermeáveis, adaptáveis à planta do pé, resistentes, arejados, todo-o-terreno, altos, baixos, leves, pesados, flexíveis, duros,… desisti. Comecei a calçar tudo o que havia abaixo do meu preço-limite, mas só o pé direito porque isto de experimentar roupa é uma xaropada daquelas e não me apetecia andar com os dois pés descalços pela loja! Trouxe quatro caixas para junto do banco e comecei no calça-descalça que não passou da segunda tentativa pois, mal assentei a planta do pé naquele magnífico exemplar, soube que estava ali o início de uma bela história de amor. Por via das dúvidas, fui buscar o número acima e o pedido de casamento consomou-se naquele instante… que conforto… parecia que o meu pé direito caminhava sobre as nuvens enquanto o esquerdo continuava a arrastar-se pelos confins dos infernos, deleitando-me eu com aquela forma de levitar nunca antes experimentada. Ainda por cima eram bonitos e modernaços, faltando apenas os pisca-piscas para as curvas do Caminho.
Isto foi ontem.
Hoje levei-os para o trabalho; há que começar a “habituá-los ao pé” ou o “pé começar a habituar-se a eles”… isto num casamento, ambos têm que se adaptar, ceder, ajustar… enfim: moldar, como o pé se molda ao sapato e o sapato se molda ao pé.
Todo eu me senti a deslizar sobre os corredores do escritório, mais alto do que o habitual (a altura da sola tornou-me apto para a apanha da azeitona) e com um conforto que não sentia desde a outra vida.
Chego a casa, ao virar das dez, já noite escura e, depois de sair do carro, sinto o pé direito deslizar sobre a calçada, não com a leveza com que tinha acariciado o chão por onde havia caminhado durante o dia, mas naquela escorregadela pastosa acompanhada de um longínquo ploft que me fez cócegas nos ouvidos e perante o qual encarquilhei o cérebro com quanta força tinha para desejar a todos os deuses em que não acredito que aquilo que eu sabia que passara a trazer agarrado à sola dos meus ténis novos não fosse aquilo que eu pensava que trazia agarrado à sola dos meus ténis novo.
Por via das dúvidas, caminhei com o ténis direito assente sobre o calcanhar até passar próximo de um candeeiro de iluminação pública para confirmar o meu pior receio: tinha pisado merda!
Só que não havia apenas pisado merda: o terço dianteiro da sola do meu ténis novo estava barrado de merda, uma espécie de manteiga de amendoim fora do prazo… todo o relevo havia sido engolido pela bosta fresca de um cão cagão qualquer que merecia ver a peida ser limpa com um escovilhão de arame farpado para aprender a não cagar na via pública, sobretudo em lugares de estacionamento.
Nos segundos em que o andar manco me transportou até â entrada do prédio (a tímida tentativa que fiz para limpar a sola à erva que crescia junto ao caminho só espalhou a preocupação que eu ia ter que limpar) comecei a cogitar no que fazer. E iniciei a operação logo à passagem da porta exterior, com o tapete comum mesmo ali, apetitoso para me receber: tentei desbastar a primeira camada, mas os nacos de merda que ficaram agarrados ao tapete, se num primeiro instante me deixaram animado, depressa o ânimo se esvaziou assim que olhei para a sola, parecendo-me igual ao aspecto desolador que eu havia visto lá fora.
Entrei em casa com todo o cuidado (atenção: não tocar no MEU tapete de entrada) e, somente com o calcanhar no solo, arremeti logo para a cozinha. Depois de espalhar uns quantos quadrados de rolo de cozinha no chão, descalcei a merda dos ténis com todo o cuidado e deixei o exemplar direito a descansar sobre o papel enquanto, depois de isolar o esquerdo no quarto para evitar o perigo de contágio. Preparei-me então para a batalha.
Comecei pelo óbvio (para mim claro, que não deverá ser o óbvio para alguém com experiência nestas merdas): limpar com rolo de cozinha… parecia que estava a lavar uma frigideira com óleo queimado. Pausa. Resolvi percorrer a casa vasculhando por ideias entre a cozinha e a casa de banho, tentando recolher tudo o que me parecia poder dar jeito, entre armários e gavetas. Armei-me com uma escova de dentes velha, álcool, algodão, e mais papel de cozinha. Sentado no chão da cozinha, abri um saco de plástico e comecei a esfregar com a escova (a sola, não os dentes) para cedo perceber que resultava melhor com a cabeça da mesma em vez dos fios. Foi uma frustração: a beleza daquela sola, cheia de relevos, recantos e recortes, que noutras circunstâncias me pareceriam tão profissionais, naquele contexto eram um broche do caralho que nem a cabeça da escova eu lá conseguia enfiar! Escova para o lixo e passei ao algodão. Supostamente ele não engana mas pude comprovar, uma vez mais, que nem tudo o que vemos na televisão adere, ainda que minimamente, à realidade. Mal comecei a esguichar o álcool para uma dose de algodão suficiente para dez curativos da costura de uma operação de peito aberto, aquela merda esguichava para todos os lados menos para a frente… lá tive que abafar a entrada do frasco e embeber o algodão no álcool para, uma vez mais, perceber que a merda que permanecia na sola era a mesma, só que mais espalhada e entranhada nas ranhuras labirínticas que um qualquer designer sádico havia projectado, certamente a pensar no dia em que alguém fosse mergulhar tão traiçoeiro exemplar na poia de consistência épica, aquela concebida pelos deuses, em articulação com o designer, para unir os pontos da história com que os mais crentes se curvam perante a ideia de que nada acontece por acaso.
Por esta altura, o meu nariz, que normalmente nunca dá sinal de si, começou a farejar um odor ligeiramente desagradável na cozinha. Era um cheiro de merda a começar a espalhar-se pela casa. É curioso como, quando nela estamos metidos, não nos apercebemos da magnitude da merda até pararmos um pouco para respirar… fiz um primeiro intervalo e fui abrir a janela da cozinha (era um dos dias mais frios do ano mas entre passar frio e ver-me envolvido por um aroma de merda, eu voto no frio!). Entretanto, tinha que encontrar ferramentas para continuar o trabalho uma vez que o arsenal estava gasto, e com resultados muito desanimadores. Lembrei-me então dos palitos dos dentes e trouxe uma mão cheia deles para o chão. Sentei-me numa posição confortável (quando tinha ido abrir a janela já me doíam os rins) e comecei a descrever o reticulado da sola do meu ténis direito novo com o palito, fazendo deslizar sobre a borracha os pequenos nacos de merda que aos poucos iam desgrudando, ao mesmo tempo que endureciam ligeiramente, o que me facilitava o trabalho.
Deu-se então um curioso fenómeno da mente, como quando nos convencemos de que a realidade é como a vemos e não como ela é na verdade: comecei a induzir-me de que aquilo não era um problema grave, que eu tinha muita sorte em ter uns ténis novos quando outros nem dinheiro para um par de ténis tinham, que a vida era boa demais para eu me preocupar com um episódio menor como ter pisado merda com uns ténis novos no dia da estreia!
E não é que resultou?! Semi-deitado no chão frio da cozinha a filtrar o aroma pestilento que fugia para o exterior pela abertura da janela enquanto eu palitava as ranhuras da sola para retirar a merda que lá estava entranhada, como acontece com alguns pedaços de carne que de vez em quando teimam em ficar alojados entre os dentes, parecia-me estar a contruir o modelo de um barco ou de um aviãozito de brincar, com a paciência que nunca tive nem compreendi para essa minúcia da “pontinha de cola”, das “peças microscópicas” ou da “precisão da pintura”! E agora via-me tal qual esses taradinhos dos modelitos de brincar, a tentar chegar com um palito ao pedacinho de merda mais escondido, sempre com muito cuidado para não deixar o palito cair no “efeito catapulta” e disparar uma bala de merda para algum lugar indesejável (que na realidade eram todos menos o saco ao meu lado ou o papel onde amiúde eu limpava a cabeça do palito, qual pintor a neutralizar o pincel. O momento zen foi tomando conta de mim à medida que a merda evacuava da sola para o papel ou para o saco e pensei que deveria ser aquela a paz que sente o pessoal que faz meditação…
Até já tinha escrito um texto todo poético de balanço do ano, com pôr-do-sol sobre o mar e tudo, e passo a última noite de 2019 a limpar a merda do sapato que me há-de levar a Santiago! Pelo menos os ténis (ou um deles) deixaram de estar reluzentes, uma espécie de baptismo de fim de ano.

PS: Claro que o sapato esta noite vai dormir na arrecadação. O outro foi com ele para não se sentir só. Antes da partida, um último miminho: peguei no frasco de after-shave (o mais ranhoso, o que anda no saco do ginásio) e borrifei a sola depauperada da bosta de outrora. Dorme na cave, mas pelo menos tem sonhos perfumados. Quanto ao casamento, admito que o clima de romance tenha sofrido um pequeno revés, mas isso é o que acontece a um casal quando um dos pombinhos começa a perceber que o outro também se peida enquanto ressona e ainda assim permanece apaixonado.

Caparide, noite de 30 para 31 de Dezembro de 2019

Dois dias depois…
De cada vez que saio de casa e me cruzo com algum vizinho que passeia o lulu, imediatamente vejo no canito o potencial cagão que me pôs em trabalhos há duas noites: Será possível que nas entranhas deste porta-chaves se tenha acumulado tamanha enxurrada?!
Depois do repouso, uma hora em água morna com detergente e era ver as partículas de merda soltarem-se da sola de borracha como as ideias se libertam do inconsciente durante o período de descanso para ocupar o espaço acessível das ideias abrindo assim caminho à criação de textos, de Ciência, etc… tal como os meus ténis se libertaram da merda inconsciente para poderem descobrir novos caminhos.
C.Q.D.  

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